La
Hollande est un songe, monsieur, un songe d'or et de fumée, plus
fumeux le jour, plus dorée la nuit, et nuit et jour ce songe est
peuplée de Lohen-grin comme ceux-ci, filant rêveusement sur leurs
noires bicyclettes à haut guidons, cygnes funèbres qui tournent
sans trêve, dans tout le pays, autour des mers, le long des canaux.
Ils rêvent, la tête dans leurs nuées cuivrées, ils roulent en
rond, ils prient, sonambules, dans l'encens doré de la brume, ils ne
sont plus là. Ils sont partis à des milliers de kilomètres, vers
Java, l'île lointaine. Ils prient leurs dieux grimaçants de
l'Indonésie dont ils ont garni toutes leurs vitrines et qui errent
en ce moment au-dessus de nous, avant de s'accrocher, comme des
singes somptueux, aux enseignes et aux toits en escaliers, pour
rappeler à ces colons nostalgiques que la Hollande n'est pas
seulement l'Europe des marchands, mais la mer qui mène à Cipango et
à ces îles où les hommes meurent fous et heureux.
Albert
Camus, in «La Chute»
Não
consegui olhar.
Ali
ao meu lado, a menos de dois palmos, aqueles corpos desnudos,
vagamente cobertos de tecido mínimo, mulheres esbeltas, esculturais,
outras nem tanto, encostadas à porta de vidro aberta, na mão um
telemóvel ou um cigarro, outras apenas um olhar, quem sabe um
convite atrás do vidro fechado. Quem sabe ainda um olhar de
tristeza, de receio, um pedido de ajuda entalado na garganta. Não
consegui enfrentar uma única face, os pensamentos cavalgando pela
novela inacabada quando parti, na certeza de que a máfia de Leste
exerce o seu poderio num lugar da Europa do Norte donde se veicula a
ideia de respeito pelos direitos humanos.
Ao
fundo ergue-se o perfil da catedral que Camus me anunciava, velando
quieta, atenta, aquelas peças humanas expostas nas vitrines, seres
humanos ao lado duma sociedade que as coloca do lado de fora dela,
que as desfruta, desconhecidas, proscritas. Ou talvez não. Nem
todas. Afinal a prostituição pode ser uma forma de sobrevivência,
uma opção de vida como qualquer outra.
Amsterdão
e os seus canais não perdem a beleza, a sua arquitectura prende-nos
o olhar, a cultura aparece na concentração e multiplicidade dos
museus e galerias. Mas a cidade cansa pelo excesso de gente anónima,
a multidão que passa e olha, olha e não vê, cansa pelo excesso de
oferta de serviços inimagináveis que proliferam em todas as zonas e
ferem a estrutura da cidade no seu conjunto.
Numa
Holanda que visitei pela primeira vez, país de grandes espaços
verdes e planos, horizontes bordados de árvores, Roterdão foi a
minha cidade. Cidade grande, mansa como o seu Maas, casas magníficas,
cais e canais e barcos e verdes, muito verde e pássaros que convivem
sem medo dos humanos. E também Delft, a cidade de Vermeer e das
faianças vindas do séc. XVII naquele azul inimitável dos nossos
azulejos bem portugueses.
Dez
dias é pouco para ver muito, e eu gosto de pousar. Gostei de ver a conquista da terra, primeiro como que um enorme porto de abrigo com um farol em cada ponta, depois um imenso atol. As pedras a atapetarem o fundo, os troncos entrelaçados e a terra retirada do mar a cobrir tudo, os diques, mais diques, a areia plantada de ervas para a segurar e finalmente mais praia, mais um porto, mais terreno agrícola, mais uma refinaria que se acrescenta.
E
também ali conheci casa e história de um verdadeiro pirata
holandês que combateu os espanhóis e deles foi feito prisioneiro,
um pirata que tentou a sorte no Brasil e Angola, felizmente sem êxito
para nós, um pirata de quem se mantém a casa referenciada numa rua
de Roterdão com o seu nome – Piet Heinstraat – e onde uma placa
destaca as suas pilhagens, entre as quais ouro, prata, pérolas,
peles, açúcar, perfumes e... um papagaio.
Hei-de
voltar.
2 comentários:
um prazer seguir a tua bela reportagem.
excelente.
beijo
Um grande apreço pelo clima denunciado
no início deste texto. Mais, depois de
se ler tudo, de lembrarmos Camus, há
aquele Hei-de voltar.
Se calhar era pelo espírito de outras
memórias, mas nos westerns o cow-boy
justiceiro voltava sempre.
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