quero falar aqui do
meu amor, quero falar
quando o silêncio é
de oiro ensimesmado,
o tempo é de
ferrugem,
e o espaço é de água
na longa solidão
riscada pelas aves.
pobre relento dos
sonhos que sonhamos:
passámos por aqui, os
olhos rasos de luz
e o coração embalado
por um fio de música
a diluir-se no
crepúsculo
com as águas morosas,
a
sombra a carregar-se
ao rés das casas, as
rosas semicerrando-se
numa leve respiração.
Vasco Graça Moura
É
quase manhã. Quase. O relógio tocou cinco badaladas e o dia ainda não chegou.
Não tarda, uma levíssima claridade desperta os pássaros no ninho e eles
conversam.
Conversam.
Não certamente sobre a organização política da sua espécie, não decerto sobre
as próximas eleições que eles sabem estar definidas, as águias no trono, as
corujas os mochos no escuro, sentindo qualquer movimento que lhes possibilite
um respasto, os abutres de noite ou de dia sobre as carcaças, disputando-as às
hienas e aos chacais.
Os
seres que povoam a madrugada são filhos da lua, dão os primeiros passos com a
suavidade da luz que a noite guardou dela. E os pensamentos acordam sem a
exaltação do dia solar, o calor alterando a mansidão deles, a perturbar o fio
que sustenta a vida, numa modorra infecunda, deixando a terra sequiosa, as
pétalas emurchecidas.
Conversam
sobre o dia que chega, o alimento que tarda, ou a necessidade de manter a
temperatura dos ovos frágeis, a atenção aos predadores, o cuidado de manter o
ninho asseado quando as crias, ainda penugentas, esperam a plumagem que as
há-de identificar pela espécie. Ouvem a voz do vento que fala da chuva a chegar
do oeste, ou do calor que o suão carrega e faz secar as ribeiras e as fontes.
Falam da vida e de si.
Os
homens desenvolveram a linguagem e o raciocínio e perderam a capacidade de conversar
a sério sobre a vida. Dizem da economia que floresce no desemprego e na redução
de salários. Falam na educação para todos reduzindo escolas no interior e procedendo
ao afogamento das escolas públicas em geral. A saúde para todos vota-se na
desintegração dos centros de saúde, no abandono de edifícios capazes de minorar
o sofrimento dos velhos que somos e se apagam abandonados e sós à esmola de
outros velhos impotentes. A justiça para todos sanciona nos tribunais a prescrição
dos castigos aos grandes e esquadrinha ao pormenor uma falta, exige o pagamento
de selo de um veículo, acrescido de coimas e custas, de 2007, a um emigrado do
país desde 2004. Falam demasiado sobre o respeito pelos animais e não têm pejo
de divulgar os prazeres obscenos da mesa usando animais vivos sadicamente
torturados. Falam demasiado sobre a preservação das espécies e continuam a
fazer tudo pela extinção da espécie humana.
E
chega o sol e o dia e logo a noite e o telejornal e o benfica e os
comentadores. Eu prefiro ir descansar para acolher serena uma outra madrugada.
2 comentários:
delicada e sensível escrita a tua.
superfície de águas calmas, em frémito.
que as madrugadas te sejam sempre serenas.
beijo
Belíssimo o teu texto, belíssimo o poema de Vasco Graça Moura. Só coisas destas nos serenam e dão alento.
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