quarta-feira, abril 02, 2014

PRIMAVERA FRIA




E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Rainer Maria Rilke




A Primavera chega em passos de frio molhados de vento.

Nem há querer que supere a fragilidade cada vez mais densa cada vez mais intensa, essa grande tempestade que cresce e altera o horizonte em sucessivas paisagens de claridade e de nuvens, de cinza, de azul e magenta, em cada dia repetidas, em cada dia diferentes, opacas, translúcidas, verídicas, imaginadas, sempre sentidas.

Foi ontem que me incomodei com a política deste meu país injusto, foi ontem que me insurgi contra a chuva que molhou a roupa já seca, foi ontem que chorei a morte do meu cão delicado, dedicado. Mas o ontem já acabou e o hoje continua injusto, mais injusto, a chuva não desiste de molhar os campos e as almas, que entretanto florescem e gozam a luz mais tempo e sabem que o frio tem os dias contados. E o gato mostra habilidades e gostos que o cão não possui, é mais travesso, menos humilde, mais tempestuoso nas demonstrações inequívocas de dedicação. Outros modos, a mesma intensidade.

Lutar contra o inexorável não faz sentido. Os dias passam de manso, marcando o tempo com fios de prata a modificar o semblante, ponteiros de prata dizendo as horas que nem sempre sentimos, os fios no rosto traçando mais fundo os sorrisos, as lágrimas mais prestes para dar aos olhos o brilho perdido, a voz mais rouca.

E a respiração mais pesada, menos afoita, o sentir cá dentro mais fundo, mais pausado. 
Como os passos.



1 comentário:

Manuel Veiga disse...

lucidez serena que apazigua...

beijo