Ontem
o pregador de verdades dele
Falou
outra vez comigo.
Falou
do sofrimento das classes que trabalham
(Não
do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou
da injustiça de uns terem dinheiro,
E
de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou
se é só fome da sobremesa alheia.
Falou
de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que
feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que
estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E
não se cura de fora,
Porque
sofrer não é ter falta de tinta
Ou
o caixote não ter aros de ferro!
Haver
injustiça é como haver morte.
Eu
nunca daria um passo para alterar
Aquilo
a que chamam a injustiça do mundo.
Mil
passos que desse para isso
Eram
só mil passos.
Aceito
a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E
um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei
a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para
qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
Alberto Caeiro
Olhar para ontem não é despiciendo. É, aliás, a
avaliação que todos devemos fazer de quando em vez, não vá o tempo passar mais
depressa do que o pensamento e assim termos alguma surpresa nem sempre agradável,
como pressupõe - quase sempre - a própria palavra surpresa.
Olhar para ontem (título da mais recente crónica de
ALA, na revista Visão) é um exercício de reflexão a requerer uma isenção de
jornalista, que nunca é total, todos sabemos como o ser humano é incapaz de
olhar do alto sem ser coordenado por insondáveis desígnios de personalidade,
caldeada por genética, educação, consciência. Recordo o exemplo estafado
daquela abóbora que cresceu mais do que o esperado por terras da Gália e cuja
notícia calcorreou os principais jornais do país, do Le Figaro ao Le Monde,
Libération ou L'Humanité. Desde a explicação científica da família das curcubitaciae,
passando pelos encómios à qualidade da indústria agrícola, à sublimidade das
terras e do clima, até à exaltação do trabalhador empenhado, a planta foi sendo
colocada no pódio em primeiro, segundo ou terceiro lugar consoante o título do
periódico.
O resultado final de olhar para ontem, o objectivo
conseguido, depende do estado de espírito do momento. Pode o olhar magoado
repousar nas memórias da infância e encontrar o lenitivo para o inconformismo
actual, pode a revolta estremecer os alicerces e encontrar a caliça, os cacos,
as ruinas carcomidas pela humidade, cobertas de musgo e de silvas, na melhor
das hipóteses já os frutos enfeitando as hastes, a madressilva perfumando tudo.
Porém, atrás de tudo, no escuro das plantas, no silêncio dos buracos negros,
quem sabe o pulsar das agonias, o sofrimento das crueldades sofridas ou o
castigo dos remorsos. Pode ser apenas o espinho do preconceito, a picada do
sarcasmo, a punição injusta, o medo que gera impotência, aquela dor mansa que
atravessa as décadas e se mantem inesquecível no fundo dos tempos.
Foi ontem que o mundo se abriu em decisões precisas,
logo depois os cortes, os golpes que condicionaram essas decisões, outros rumos
traçados, as separações, os lutos, as vidas novas, as pegadas na terra molhada
de lágrimas.
E hoje a chuva que acalma, a chuva, a água que tudo
renova.
1 comentário:
admirável (ia a escrever invejável) esse amável, sábio e sensível distanciamento...
beijo
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