Passados quinze dias o doutor partiu.
Percebeu de repente que tinha de ir à procura da sua infância noutro lugar. Em
Munique descobriu um anuário: Klara Sollner, Schwabing, rua e número. Avisou-a
da sua visita e pôs-se a caminho.
Uma mulher esbelta deu-lhe as boas-vindas
numa sala cheia de luz e bondade.
“E ainda te lembras de mim, Georg?”
O doutor estava maravilhado. Por fim disse: “Então
és tu, a Klara…” Ela manteve o rosto calmo com a fronte pura e inteiramente
imóvel, como que a dar hipótese de ele a reconhecer. Isso levou o seu tempo.
Finalmente, o doutor parecia ter descoberto qualquer coisa que lhe provava que
a sua companheira de infância estava, de facto, na sua frente.
Rainer Maria Rilke in «Histórias do Bom Deus»
Nasci num planalto a quase dois mil metros de
altitude e a duas centenas de quilómetros do mar que encontrei pela primeira
vez aos oito anos de idade. Dessa mesma altura a primeira viagem de avião, num
novíssimo Dakota, com meia dúzia de passageiros a bordo, eu e a minha amiga
dilecta de ainda hoje, ambas entregues aos cuidados de uma hospedeira. Descida
no aeroporto do Lobito e finalmente Luanda, os tios, os avós à espera.
E assim o mar. Aquela massa imensa de água
que findava para além do horizonte, as ondas chegando, uma e outra vez altas e
logo a correrem na areia a baterem com força nas pedras em espuma branca a
salpicar-me o rosto. E as gaivotas voando em círculos, pousadas na areia,
pousadas nos dongos dos pescadores, eles concertando as redes sob as palmeiras
da Samba. Foi mais, foi muito mais, foi maior do que o rio e as lagoas mansas
do meu planalto.
Ainda hoje essa paixão se mantém. Não consigo
entrar nas águas demasiado frias da costa do Atlântico nestas latitudes, mas
olhar o mar, apenas olhar o mar, ouvir o som do mar, é um prazer sem tamanho. É
junto ao mar que me encontro, descanso nas minhas raízes, nos meus sonhos de
antanho, antes da praia se encher de gente, a praia vazia, vazia até das
conchas coloridas, os búzios que já não há, das pedras que incansavelmente
rolavam brilhantes, dos milhares de pequeníssimos caranguejos que corriam à
frente dos nossos pés e se escondiam nos orifícios da areia.
O mar me ajuda a constatar que tudo mudou.
Tudo mudou menos o mar. A força do mar, a suavidade do mar, a beleza do mar.
Porque as faces das pessoas não se envergonham das mentiras, olham nos olhos e faltam
à verdade. Olham nos olhos e dizem o que não sentem, olham e defendem o que
todos sabem não ser a verdade. Asseveram as falsidades que nos enredam num
caminho sem volta, que nos tolhe todos os movimentos, que nos derrota.
Só o mar não mudou, nas praias sem bichos, sem pedras, sem palmeiras,
sem coqueiros, sem dongos.
2 comentários:
o "marulhar" da tua escrita. sempre bela...
beijo
" Porque as faces das pessoas não se envergonham das mentiras, olham nos olhos e faltam à verdade. "
Por quê?
PS.: abraços afetuosos \0e/
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