Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.
Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.
Carlos Drummond de Andrade
Devo
ter morrido. Os dias quentes amontoam-se sobre o prato do corpo como
panquecas saídas do lume, um atrás do outro, lisos, redondos, iguais.
Mesmo dos telejornais não jorra senão lume, casas e carros e pessoas,
tudo cremado pelo calor. Para além das outras mortes anunciadas, os
milhares de professores sem emprego, as centenas de funcionários das
escolas a expurgar porque em Portugal a educação é excessiva, porque o
orçamento não suporta o peso da educação. Suporta a demagogia de
governantes que não descem do pedestal, não cortam nas despesas duma
governação incuriosa e injusta que nomeia num único dia umas dezenas de
secretários de estado, mais o rol de benesses que lhe estão acoplados,
mas esses não são "funcionários", é uma palavra demasiado plebeia, só
têm de comum o facto de serem pagos, mais bem pagos, pelos impostos
daqueles a quem é retirado o direito de trabalhar, mas não o dever de
pagar.
Voltemos
às panquecas. As panquecas que passam a chamar-se crepes - lá está o
nome excessivamente plebeu - quando dobradas delicadamente uma e outra
vez embrulhadas em creme dourado e perfumado a citrinos, tão finas e
nobres que adquirem nome de mulher, Susette, de consoante dobrada porque
é à francesa e os franceses são melhores do que nós, ou não fossem
estrangeiros. As panquecas, dizia eu, podem colher-se individualmente,
como os dias, podem rechear-se de guloseimas doces ou salgadas, como os
dias, podem comer-se simples, polvilhadas com o açúcar e canela tão
português, tão natalício, gostosas e olorosas como as flores que se
compram no mercado e enfeitam a casa quando não há por perto a urze ou a
madressilva que se oferece pelos campos.
1 comentário:
grato pelo abraço em memória do Urbano.
beijo
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