No fundo, Ana sempre tivera necessidade de
sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por
caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele
caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem
verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior
parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido
para descobrir que também sem a felicidade se vivia
Clarice
Lispector
A felicidade é, no melhor sentido gramatical
do termo, um nome, um substantivo abstracto (terá outro nome agora, as
nomenclaturas mudam como mudam os nomes das instituições, dos ministérios, como
se não houvesse nada importante para estudar, para realizar, como se mudar a
designação fosse suficiente para melhorar o que quer que seja) por maioria de
razões. Consegue ser mais abstacto do que liberdade, pois esta ainda se pode,
em certos casos, concretizar, alguém que deixa de estar dentro de um
estabelecimento prisional e passa a viver em liberdade ainda que condicionada a
outros muros.
A
felicidade é um estado intermitente de vida, quando se está dentro dela não se
sabe o que se experimenta, muito raramente se reconhece, e quando se olha para
ela já acabou, é o agora que entretanto já foi substituído e logo se reconhece pretérito.
Identifica-se melhor no passado, e não porque julguemos hoje ter sido felizes
numa determinada época ou situação, nada disso. Apenas quando em momentos
únicos e raríssimos um sentido nos desperta para uma sensação anteriormente
experimentada que nos acode de repente, um som um sabor um odor, qualquer coisa
de inefável que adeja bem dentro de nós, nos faz estremecer de emoção, tão
breve que logo se desvanece, um halo de felicidade que se procura recuperar sem
êxito.
Não sei se a felicidade é tão importante
quanto se julga, não sei se a felicidade é alguma coisa que deva perseguir-se
porque ela não tem forma nem ocupa espaço. É algo de etéreo porque só existe na
imaginação, tem uma duração imensurável na brevidade ou permanência, é esquiva,
é preconceituosa, não convive com a vida, tira-nos dela. Se e quando consegue
olhar-se para ela, não pode ver-se mais nada, ela preenche tudo, não permite
misturas, é como o nevoeiro que não deixa a luz atravessar. Porém nunca se
demora no mesmo lugar por muito tempo, basta um vento breve de realidade e a
felicidade por magia desaparece, simplesmente se apaga.
Pode assim dizer-se que a felicidade nunca
está presente. Daí a procura incessante dela, a necessidade humana de melhorar
o presente a cada passo, quantas vezes a noção correcta de que ela se esvai
entre os dedos, era tanto o que tínhamos, a luz, mais calor, a chuva a mimar os
campos, as flores abrindo na magia das cores, os pássaros a louvar a primavera.
Agora faltam as abelhas, a comida escasseia, os lobos atacam os rebanhos,
outros uivam.
Há que enfrentar a peleja e repor o equilíbrio.
2 comentários:
não existe felicidade - apenas momentos felizes...
(desculpa o lugar comum)
o texto como sempre - delicadíssimo tricot de emoções
beijo
Vagarosos instantes
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