De entre as recordações mais antigas, quando
eu era muito menina, ficaram-me as histórias que meu pai nos contava da raposa
e do lobo (do Romance da Raposa, de Mestre Aquilino, vim a saber mais tarde),
histórias repetidas vezes sem conta, a nosso pedido, meu e de meu irmão, e
muitas vezes discutidas porque os episódios variavam nuns pormenores alterados
aqui e além, e nós estávamos atentos. Havia ainda a história da velha que tinha
ido à festa e se metia numa cabaça para fugir do lobo mau; parece que ainda hoje
vejo os gestos expressivos e as gargalhadas de meu pai a tornarem tudo mais
excitante.
Não sei se para fugir a imprecisões que nós
não deixávamos passar, se apenas por sermos já mais crescidos, também nos lia
contos, eventualmente saltando espaços, mas lia para nós, e o Natal não sei
porquê, traz-me essas lembranças mais perto. As noites eram mais longas quando
estávamos na fazenda e recordo-me de pedir as leituras numa altura em que eu já
sabia ler, mas era ainda difícil, e afinal tão mais bonito lido por meu pai.
Dessa época lembro esta história que vem a
propósito, um conto de Augusto Gil, em que um qualquer astrónomo, grande
estudioso, nas suas pesquisas, descobriu um dia um cometa. Estudou o seu
percurso, fez contas e mais contas e concluiu que o mesmo viria colidir com a
terra num preciso momento, hora, dia, mês, tudo matematicamente provado para
consternação generalizada.
«Só passados seis
dias o astrónomo, batendo uma punhada de tremenda cólera no tampo da
secretária, viu que se enganara…Uma vírgula, um estupor de uma vírgula posta
fora do lugar, fora a causa daquela catedrática estendência. Para sustar o
fiasco iminente, transmitiu um atabalhoado aviso às folhas berlinenses.
Mas fossem lá ter
mão! Já a galga corria, a pleno fôlego, de país em país, de terra em terra…
[…] E como na noite
fatídica a mulher lhe dissesse que precisava de escrever à modista por causa do
vestido azul, o Moura, erguendo a face magra dum volume de patologia,
objectou-lhe com uma serenidade cómica:
– O vestido azul! Mas
já te não chega a tempo. Não sabes que é logo, às quatro e meia, que acaba o
mundo?...
O Mourita filho que
estava ao lado, a dar corda a um boneco de lata, suspendeu a operação.
O fim do mundo!... E
ia a perguntar ao pai o que era isso; mas o pai tinha mergulhado de novo na
leitura. Abriu a boquita para interrogar a mãe; mas a mãe começava a redigir a
epístola… Ficou por isso calado, a matutar no caso.
E a matutar no caso
se lhe cerraram as pálpebras e lhe descaiu das mãos, para a alcatifa, o seu
boneco de corda.
E foi Mourita filho
levado nos braços duma criada gorda para a caminha de guardas. Despiu-o.
Deitou-o e, aconchegando-lhe a roupa, repenicou-lhe nos lábios em flor um beijo
amigo. Lá o deixou num sono quieto, de passarinho cansado…
E a Terra foi girando
e rodopiando nos espaços, desimpedidamente, sem entrave, sem percalço.
E a madrugada luziu
no céu, como na véspera. E o sol irrompeu do recorte dum monte, à hora prefixa
dos repertórios.
Quando as oito da
manhã bateram, a criada gorda entrou no quarto do Mourita com o leite do
desjejum.
– Vá menino, leva arriba.
Aqui tem o seu leitinho…
O petiz sentou-se na
cama e semiabriu os grandes olhos garços. Depois, desviou-os da claridade da
janela e, esfregando-os com as mãozitas fechadas, recomendou à moçoila:
– Ó Ana, vê se lá fora inda há Mundo…»
4 comentários:
Gosto de histórias e de andorinhas nos telhados...5 anos depois exactos retribuo um comentário em dia de natal...
Abraço com azevinho.
"Corre, corre, cabacinha", uma história que eu adorava em criança e que agora faz tambéma as delícias da minha neta.
Também adorava ouvir histórias.
Mas não conhecia essa do fim do mundo...
Querida amiga, espero que o teu Natal tenha sido muito Feliz e desejo que o teu novo ano seja excelente.
Beijinhos.
Ano de 2013 com paz e saúde na medida certa para você minha amiga.
Abraços afectuosos
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