sábado, setembro 01, 2012

NA TERRA SONÂMBULA



Me ensinaram a apagar essa parte de mim, crenças que alimentaram nossas antigas raças. Agora, não é que acredite neles, nos espíritos. Sei que sou um deles, um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de vocês, os viventes. Nós somos sombras no teu mundo, tu jamais nos tinhas escutado. É porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. Eu já te tinha visto desse outro lado, mas as tuas linhas eram de água, teu rosto era cacimbo. Fui eu que te trouxe, fui eu que te chamei. Quando queremos que vocês, os da luz, venham até nós, espetamos uma semente no tecto do mundo. Tu foste um que semeámos, nasceste da nossa vontade. Eu sabia que vinhas. Te esperava, Kindzu.
Mia Couto in «Terra Sonâmbula»

 
Mia Couto é, decididamente, um dos maiores escritores de língua portuguesa vivos. E não é que me delicie numa leitura fluida e suave onde eu mergulhe, esquecendo até o espaço em que leio, embalada por exemplo na sonoridade arrebatadora do ordenamento sintáctico de um Vieira, uma sinfonia de palavras, como lhe chamou Pessoa.

Nada disso. Não me esqueço em cada virar de página de que estou a ler o português de Mia Couto, as suas palavras inventadas, as palavras ditas de quem não andou na escola e aprendeu o português de ouvido, com falhas gramaticais de arrepiar os puristas da língua, com as trocas frequentes e repetidas dos lugares dos adjectivos, os pronomes desviados, trocados na sua função de complemento.

É francamente difícil ler a sua prosa. Já tinha antes lido outros escritos de Mia Couto sem grande entusiasmo, para além de apreciar os neologismos que ele colhia e grafava depois em letra de forma, num trabalho interessante de preservação da língua de união falada pelos nativos de Moçambique. Mas encontrei admirável esta «Terra Sonâmbula», porque o autor consegue, a exemplo de João Guimarães Rosa em «Grande Sertão: Veredas», construir uma personagem que se identifica totalmente com a terra a que pertence, sendo parte dela na condição, na procura, nas dúvidas, nas crenças, no linguajar, no desejo infinito e urgente de acabar com a guerra, transformando-se finalmente num dos anjos-guerreiros, os naparamas que trazem a paz.

«Eu me olhei, sem confiança. Mas o que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama!»

Um velho e um menino, o velho a guardar em si toda a sabedoria tentando preservar o menino, ocultando-lhe a proveniência de entre cadáveres, enterrado vivo - conselhos da experiência dos anos - mas a criança resgatada, renascida, tem a arma que o velho não possui: o dom de saber ler os escritos que encontra no que sobrou do velho maximbombo queimado pela guerra onde ambos vivem escondidos.

A leitura torna-se difícil porque se tropeça a cada passo com a troca do complemento directo pelo indirecto, que é comum aos angolanos e brasileiros menos escolarizados. Cito exemplos, mas esta é a linguagem recorrente em todo o livro:

Talvez eu lhe escute nesse momento
Então lhe ajudaram a sentar
Não volto a fazer sem lhe ouvir
Nenhum tiro lhes incomodava
Eu gostava de lhe visitar
Não lhe apresentavam à lua como fazem com todos os nascidos na sua terra.

O outro pormenor ao longo da obra é a colocação dos adjectivos antes do nome, a demonstrar a grande influência da expressão inglesa predominante em Moçambique. Não é que a língua portuguesa impeça de usar essa forma de expressão, mas aqui torna-se excessivo porquanto a sonoridade da língua portuguesa pede o nome antes do adjectivo, mormente quando este é mais longo que aquele:

Hienas perseguindo agonizantes gazelas
Nem barrigasse o barco no firme chão
Mesmo Assane se associava às oficiais suspeitas
Ele me fez um escondido sinal
Foi atirado para uma desconhecida praia
Estórias de embalar crianças do inteiro mundo

De todo o livro sobressai acima de tudo a justeza e a pertinência dos neologismos que enriquecem sobremaneira a língua que tanto prezo: o chão crivejado de casinhas de caranguejo; salpingaram-me gotas, por exemplo. E também uma suavidade de escrita que se estende até às últimas linhas e nos deixa nos olhos um sabor a poesia corroborando ao mesmo tempo toda a mensagem da obra de identificação total e glorificação da terra-mãe.

De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra.

2 comentários:

jorge esteves disse...

Subscrevo por inteiro e por inteiro sempre que me possa, o releio!
abraço.

Manuel Veiga disse...

penetrante teu texto. para alem da fluidez que respira...

beijo