segunda-feira, junho 18, 2012

Inquietações



São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.

Bernardo Soares «O Livro do Desassossego»



Gosto de acordar no fundo da madrugada quando os pássaros ainda no ninho dizem do dia que vai começar, da luz que vai abrir as cores. Há depois, logo a seguir, mal o sol se levanta no horizonte, como que um sossego que incomoda, por que será que as aves se calam? Deve haver uma razão que me escapa e falta-me o meu pai para fazer-lhe perguntas assim desimportantes.

Outras há que me inquietam ainda hoje pela desfaçatez, o cinismo de uma apropriação que vai permanecer porque a memória se constrói por caminhos nem sempre inocentes mas reais, legais e, acima de tudo, por sobre o esquecimento dos homens e a acuidade oportuna de alguns outros.

Ocorrem-me os chapéus ditos panamás que não são oriundos do Panamá, os pincéis de pêlo de camelo que até são de esquilo, a caixa negra dos aviões que não é negra, e agora a Casa dos Bicos a promover um escritor Nobel com um Desassossego que não lhe pertence. Não havia necessidade, diria um grande humorista com propriedade, neste caso. Pelo que me toca, fico em desassossego, porque daqui a poucas décadas, com a iliteracia vigente, o Livro do Desassossego foi escrito por Saramago, como o Elevador de Santa Justa foi construído por Gustave Eiffel - assim eu ouvi dizer aos jovens numa visita de estudo à Lisboa pombalina..

É naquele pedaço de tempo em que as aves se calam na manhã aberta, antes do sol, que as coisas acontecem. Com certeza é natural, natural como termos ganho o jogo com os Holandeses e acordarmos mais felizes, quando o jogo maior se jogou com os Gregos, afinal como nós a quererem manter-se Europeus.

O mundo constrói-se devagar, nem sempre quando e como queremos, como desejaríamos, mas segue adiante, em direcção ao futuro.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

o teu texto e (como sempre) cerzido em fios delicados e cores suaves. como uma aguarela luminosa e vibrante.

mas hoje fico um pouco "desassossegado", pois não alcanço o propósito da "Casa dos Bicos" e o Livro do Desassossego.

beijo

Rocha de Sousa disse...

Aquela calma matinal não apaga a va-
ga ansiedade que o despertar muitas
vezes nos toca. É que os pássaros sabem ler a ordem do mundo e Pessoa
o desassossego dele.Na balbúrdia das
convenções é verdadeiramente estúpi-
do que as caixas pretas, das aerona-
ves, sejam cor de laranja.E como fa-
zer da geometria dos bicos a plana carpintaria de Saramago?