São as pessoas que
habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me
conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó
salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade
da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o
traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
Bernardo Soares «O Livro do Desassossego»
Gosto de acordar no
fundo da madrugada quando os pássaros ainda no ninho dizem do dia que vai
começar, da luz que vai abrir as cores. Há depois, logo a seguir, mal o sol se
levanta no horizonte, como que um sossego que incomoda, por que será que as
aves se calam? Deve haver uma razão que me escapa e falta-me o meu pai para
fazer-lhe perguntas assim desimportantes.
Outras há que me
inquietam ainda hoje pela desfaçatez, o cinismo de uma apropriação que vai
permanecer porque a memória se constrói por caminhos nem sempre inocentes mas
reais, legais e, acima de tudo, por sobre o esquecimento dos homens e a
acuidade oportuna de alguns outros.
Ocorrem-me os chapéus
ditos panamás que não são oriundos do Panamá, os pincéis de pêlo de camelo que até
são de esquilo, a caixa negra dos aviões que não é negra, e agora a Casa dos
Bicos a promover um escritor Nobel com um Desassossego que não lhe pertence. Não
havia necessidade, diria um grande humorista com propriedade, neste caso. Pelo
que me toca, fico em desassossego, porque daqui a poucas décadas, com a iliteracia
vigente, o Livro do Desassossego foi escrito por Saramago, como o Elevador de
Santa Justa foi construído por Gustave Eiffel - assim eu ouvi dizer aos jovens
numa visita de estudo à Lisboa pombalina..
É naquele pedaço de
tempo em que as aves se calam na manhã aberta, antes do sol, que as coisas
acontecem. Com certeza é natural, natural como termos ganho o jogo com os
Holandeses e acordarmos mais felizes, quando o jogo maior se jogou com os
Gregos, afinal como nós a quererem manter-se Europeus.
O mundo constrói-se
devagar, nem sempre quando e como queremos, como desejaríamos, mas segue
adiante, em direcção ao futuro.
2 comentários:
o teu texto e (como sempre) cerzido em fios delicados e cores suaves. como uma aguarela luminosa e vibrante.
mas hoje fico um pouco "desassossegado", pois não alcanço o propósito da "Casa dos Bicos" e o Livro do Desassossego.
beijo
Aquela calma matinal não apaga a va-
ga ansiedade que o despertar muitas
vezes nos toca. É que os pássaros sabem ler a ordem do mundo e Pessoa
o desassossego dele.Na balbúrdia das
convenções é verdadeiramente estúpi-
do que as caixas pretas, das aerona-
ves, sejam cor de laranja.E como fa-
zer da geometria dos bicos a plana carpintaria de Saramago?
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