segunda-feira, maio 21, 2012

O ESPELHO



A serra continuava silente, mas, àquela hora, por todas as malhadas, nas que se expunham sobre os declives e nas que, entre fragas, só do céu se viam, começava a faina dos pastores. Horácio pegou nas ferradas e ordenhou, de novo, as ovelhas. Queijou, repetiu as operações da véspera, as operações que ele havia de repetir, de manhã e à noite, até ao fim de Junho, quando os úberes secavam. E, tudo pronto, abriu o bardo. De andaina humedecida, o cajado na mão direita, no braço esquerdo uma ferrada com batatas, partiu atrás do rebanho.
[…] Quando o crepúsculo se aproximava, as ovelhas tomavam, espontaneamente, o caminho do lugar onde deviam dormir. Regressavam lentamente, enchendo de melancolia a serra, com a dolência das suas campainhas nas derradeiras horas do dia.

Ferreira de Castro in «A Lã e a Neve»

 
A natureza é o espelho em que me fito, ser humano no uso da razão, a procurar as fontes para nelas encontrar a explicação inexistente de estar aqui, setenta anos depois da nascente, à espera do encontro com o mar.

Comparo a vida ao fio de água que brota do útero da terra e desde o primeiro momento corre apressado ao encontro do fim que não termina coisa alguma, apenas se altera, pura e simplesmente, na perda de identidade como água doce e potável, a fecundar o que sem ela seria estéril. Cumprida a sua missão, ela mistura-se, confunde-se, iguala-se, engrandece; viaja na crista das ondas, nas profundezas dos oceanos, dá vida a outras vidas.

E um dia retoma o ciclo, deixa-se enfeitiçar pelo calor do sol, voa como névoa a formar castelos de nuvens, primeiro em cirros brilhantes e delicados, depois cúmulos em flor e finalmente em nimbos espessos, escuros, prontos a pintar a terra de branco ou simplesmente a pingar em lágrimas fertilizantes que descem aos lençóis freáticos à espera do tempo de florir em nascente límpida e pura. 

Outra vez o mundo da terra para desbravar em valas, regatos, rios, lagoas e lagos imensos, despenhamentos em pureza, a dor da poluição – por quanto tempo? – e a morte, o fim, transformação, travessia, purificação com certeza.

O tempo mais perfeito, mais intenso, mais sereno, foi aquela pausa ainda no topo da montanha, já espelho do céu.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

há lugares assim - míticos!

...e palavras que os desenham em filigrana.

beijo

Rocha de Sousa disse...

Leio o texto e olho de novo para
a imagem com um antecupado e imen-
so sentimento de perda.