A serra continuava silente, mas, àquela hora, por todas as malhadas, nas
que se expunham sobre os declives e nas que, entre fragas, só do céu se viam,
começava a faina dos pastores. Horácio pegou nas ferradas e ordenhou, de novo,
as ovelhas. Queijou, repetiu as operações da véspera, as operações que ele
havia de repetir, de manhã e à noite, até ao fim de Junho, quando os úberes
secavam. E, tudo pronto, abriu o bardo. De andaina humedecida, o cajado na mão
direita, no braço esquerdo uma ferrada com batatas, partiu atrás do rebanho.
[…] Quando o crepúsculo se aproximava, as ovelhas tomavam, espontaneamente,
o caminho do lugar onde deviam dormir. Regressavam lentamente, enchendo de
melancolia a serra, com a dolência das suas campainhas nas derradeiras horas do
dia.
Ferreira de Castro in «A Lã e a Neve»
A natureza é o espelho em que me fito, ser humano no uso da razão, a
procurar as fontes para nelas encontrar a explicação inexistente de estar aqui,
setenta anos depois da nascente, à espera do encontro com o mar.
Comparo a vida ao fio de água que brota do útero da terra e desde o
primeiro momento corre apressado ao encontro do fim que não termina coisa
alguma, apenas se altera, pura e simplesmente, na perda de identidade como água
doce e potável, a fecundar o que sem ela seria estéril. Cumprida a sua missão,
ela mistura-se, confunde-se, iguala-se, engrandece; viaja na crista das ondas,
nas profundezas dos oceanos, dá vida a outras vidas.
E um dia retoma o ciclo, deixa-se enfeitiçar pelo calor do sol, voa como
névoa a formar castelos de nuvens, primeiro em cirros brilhantes e delicados, depois
cúmulos em flor e finalmente em nimbos espessos, escuros, prontos a pintar a
terra de branco ou simplesmente a pingar em lágrimas fertilizantes que descem
aos lençóis freáticos à espera do tempo de florir em nascente límpida e pura.
Outra vez o mundo da terra para desbravar em valas, regatos, rios, lagoas e
lagos imensos, despenhamentos em pureza, a dor da poluição – por quanto
tempo? – e a morte, o fim, transformação, travessia, purificação com certeza.
O tempo mais perfeito, mais intenso, mais sereno, foi aquela pausa ainda no
topo da montanha, já espelho do céu.
2 comentários:
há lugares assim - míticos!
...e palavras que os desenham em filigrana.
beijo
Leio o texto e olho de novo para
a imagem com um antecupado e imen-
so sentimento de perda.
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