segunda-feira, outubro 24, 2011

Perspectivas

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Eugénio de Andrade



Sensivelmente a meio da Ilha, não do lado do mar batido mas do interior da baía, havia um casco velhíssimo de navio junto à praia, meio coberto de areia, com uma grande parte fora de água na maré baixa, a ferrugem roendo a pintar os ferros de acobreado.

A água era límpida e os meus olhos não viam o navio, não questionavam a sua presença ali, se algum naufrágio, se gentes perecendo numa qualquer faina ou que memórias guardava aquele esqueleto onde agora se construía vida.

Eu passava sobre a água em equilíbrio por sobre os ferros até onde podia, o mais longe possível da praia sem ondas, olhando fascinada o mundo agitado que se processava por baixo de mim, pequena deusa olhando aqueles esconderijos, nichos, onde os peixes deslizavam velozmente por entre os ferros esburacados, mexilhões e lapas cobrindo tudo como musgo a adoçar as ruínas na terra, ouriços e estrelas do mar pousados no fundo de areia clara.

Registo na memória, dessa época,  aquele quadro sem cores, e gostaria de olhá-lo, olhar-me de outra forma, em uma outra perspectiva. Com o assombro me percorreu quando me vi diante de uma imagem de um ramo de jarros, flores completamente brancas, e percebi que deveria concentrar-me para o desenhar, não nas flores, mas no sombreado em volta delas, apenas nisso, para que elas emergissem na sua brancura, sem que o papel fosse maculado.

Ver o mundo do avesso é um exercício que deveríamos praticar com mais frequência: olhar o mundo como deuses, o planeta azul rolando na escuridão do cosmos, ou sentir-se bicho, árvore, pedra milenar, acossado pela insatisfação dos homens. O resultado final será certamente o pretendido, a gravura perfeita até uma nova era que já não será a nossa.


1 comentário:

Manuel Veiga disse...

desenhar o assombro. no interior de nós mesmos. e procurá-lo no Outro!

encantamento o meu, em teu belo texto.

beijo