A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam barbaramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Jorge Luís Borges in «A Biblioteca de Babel»
Passei, esta semana que finda, junto ao número 107 da Rua dos Heróis da Grande Guerra, em Caldas da Rainha, e fiquei triste.
Sabia que a livraria 107 fechava as portas no fim de Setembro, mas ver a porta cerrada a lembrar tudo o que se perdeu, ler as palavras de despedida de Isabel Castanheira, fez-me sentir triste, triste. Sempre conhecera ali aquele espaço carregado de livros até ao tecto, um espaço estreito e fundo onde os senhores eram mesmo os livros. Os livros e os gatos com nomes de autores, caricaturas de Bordalo e de bichos mitológicos, fotografias de escritores, vigiando tudo.
Não foi a primeira que fechou naquela cidade, mas aquela, a mais antiga, a livraria de referência desde há décadas, por iniciativa de uma jovem batalhadora até ao limite, foi mais dorida. Não foi possível combater as sucessivas batalhas contra o desinteresse, a iliteracia crescente, contra os lugares de consumo de outros bens, as estações de correios, as grandes superfícies, os supermercados das pequenas cidades onde as prateleiras de livros se alinham constrangedoramente junto ao local de venda de peixe e de carne, onde as pessoas se demoram à espera do número da ficha que têm guardada na mão.
A cultura tentando assim chegar a todos, tentando seduzir os que dela se distanciam, porque a cultura custa dinheiro em Portugal. E ainda por cima com os museus a deixarem de ter entrada livre aos domingos. Quem lá ia por gosto, com poucos cobres no bolso, deixa de ir, porque há outras necessidades mais prementes, há bocas pequenas e grandes para alimentar em casa.
Perante uma tão insólita medida, só me ocorre concluir que esta medida vai desagravar poderosamente o défice do Estado, vai reduzir significativamente a dívida soberana, e vai com certeza tornar os pobres ainda mais pobres.
1 comentário:
"Fahrenheit 451", lembraste do filme?
dói, sim!
("não há machado que corte...")
beijo
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