quarta-feira, setembro 28, 2011

Coincidências



Há dois ou três anos, ao contrário da minha ausência nos espelhos, para onde olhava por vezes sem formar a percepção do meu rosto, comecei a deter-me nos lugares onde esses misteriosos objectos me fitam, imobilizando a face e os olhos. Queria rodar os olhos e ter consciência disso, mas só dava por eles depois de parados, atrasada irremediavelmente a minha percepção ao apropriar-se, enfim, dessa imagem. Agora, como acontece com a pele das mãos, outros sinais e mudanças vieram alterar a identidade anterior deste rosto que eu espreitava num rápido reconhecimento. De frente para mim, o que vejo, surpreendido, é outra pessoa, é outra face, embora a experiência de dezenas de anos me diga que ninguém pode, neste instante, subtrair o retorno da minha imagem à consciência que consegue ainda reconhecer-me. 

Rocha de Sousa in «Coincidências Voluntárias» 


A figuração do mundo é o retrato de nós. 

É o espelho primeiro antes de encontrarmos a água plana e rasa de um lago onde mora o espanto da figura de ser humano que acena e nos traz de volta o que nem sempre coincide com o modelo que antes nos construíramos por dentro. Esse primeiro encontro pode ser determinante, eu diria que é sempre determinante no acabamento dos interiores de nós, no acerto dos tons da pintura, o desenho das sancas do tecto, os azulejos, o mosaico hidráulico, a madeira do chão que pisamos pelo resto dos nossos dias. 

Vem-me à ideia aquela estreita tábua de madeira grossa, quando não apenas um tronco, que eu atravessava lesta e sem receio, colocada sobre um qualquer regato ou vala acidental, nas caçadas às perdizes com meu pai, pelas madrugadas frias ou pela tardinha no capim ainda morno do sol forte de cacimbo. O equilíbrio inato do ser que caminha erecto sobre os membros posteriores, braços abertos como asas planando no espaço.

Em cada momento, é o mundo em volta que nos modela a imagem, como as dunas sopradas pelo vento, as falésias erodidas, as rochas sovadas pelo mar. Não temos como fugir da natureza de que somos parte, da semente que nos gerou, dos lugares onde nos plantaram, mas temos a vida toda para seguir adiante, não somos flores presas à terra pela tirania do caule. Os anos não contam senão para acrescentar a maleabilidade no processo de crescimento que não termina antes do último estertor. 

Cada dia que nasce traz uma luz nova para podermos abarcar o mundo com mais transparência, olhar para trás e ver o caminho pisado, olhar adiante e caminhar com a serenidade da experiência, da sabedoria conquistada ao abrir os braços para o equilíbrio. Sabendo embora que não podemos voar. 

Sabendo que a qualquer momento podemos cair.

1 comentário:

Rocha de Sousa disse...

A figuração do mundo é o retrato de
nós.
Bela e acertada afirmação.Coloco-a já na 2ª edição da minha «coincidência».
Obrigado por me ter convocado para este post bem generoso e lúcido. A
certeza da vida é um junco soprado ao entardecer. Entardece depressa para todos nós. Há os que nem chegam a amanhecer, nascendo mor-
tos.Outros,faustosos de sabedoria, tropeçam na vontade de Deus e mor- rem aos vinte ou aos trinta anos. Como a figura mítica de Ícaro que Rogério Ribeiro tão bem avaliou -- um visionário que construiu as suas asas para alcançar as aves, mas não soube calcular o material e tombou num ápice, Ícaro amado.