segunda-feira, julho 04, 2011

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Ah fidelidade, coisa humilde, coisa que não basta,
coisa que não vive, como te chamo flor?
O sol e o ar sobre a cidade passam.
Do alto as pombas na cidade pousam.
Como te chamo flor?
Como até nisto eu posso atraiçoar-te?
Jorge de Sena



A escrita e a leitura cumprem uma relação de fidelidade que se alimenta uma à outra, da outra.

A fidelidade à escrita advém da fidelidade à leitura e desta aos escritores, aos livros impressos, aos jornais, aos panfletos da política e religião, aos papéis velhos, amarelecidos, enrolados, atados, que nos fazem contar os anos decorridos, aos escritos nas paredes sem sentido, com sentido, sentidos, desenhados, velados, fechados, rasgados como gritos.

A fidelidade às palavras, a fidelidade às coisas, a fidelidade às pessoas. Dizendo a palavra muitas vezes, pegando nela como se de um objecto se tratasse, palavra como coisa, voltando-a, torcendo-a, lendo-a ao contrário, pegando-lhe por uma ponta e deixando-a deslizar para baixo como um enfeite, balançá-la como um pêndulo, a páginas tantas ela desaparece. Afinal não é mais que um nome abstracto. Não existe definido, não é palpável, é maleável e leve como a nuvem que paira em cada manhã sobre o horizonte.

Só posso afinal ser fiel a mim própria, àquilo que sou, ao que me fiz e me transformei. Não sou igual em cada dia que passa, Eu cresço e multiplico-me e diversifico-me a cada instante, as células cada vez mais raras tentando a fidelidade ao que já nada é.

O poeta chama-lhe flor. E ainda assim atraiçoa-a.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

ser fiel às próprias (in)fidelidades. cultivando eternas permanências...

beijos

Rocha de Sousa disse...

Aguda reflexão.É que uma palavra vale tantas imagens quanto uma ima-gem vale as tais mil palavras.Soma
de equívocos, escrever com a unida-
de das frases sem se perceber a mentira porque no seio da rede está
a palavra ou as palavras que des- vendam a verdade. 2 são dois. Mas dois podem indiciar algo de móvem
que se aproxima ou dois corvos en-
ganando a electricidade da linha, ainda que ousados nela.