terça-feira, abril 19, 2011

Planar com os ventos

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos»

 
A chuva dedilha lá fora a toada da noite cansada das vergastadas do vento e da chuva, dos gritos saídos das nuvens em clarões de luz ecoando depois em golpes em ondas de sons que se desfazem e somem no espaço longe. Tudo o mais se aquieta e procura refúgio ao troar da natureza ameaçadora, sabendo que a fúria se apaga em ternura na chuva mansa a acariciar as folhas, a escorrer pelos caules, a sulcar a terra e a alimentar as fontes.

Quem dera que a alma humana bebesse o húmus desta certeza e perdesse o medo. Quem dera que nela a escuridão se tornasse dia, ainda que as tempestades se abatessem, que os trovões ribombassem, que os raios ferissem o olhar de assombro, temor que fosse. Mas breve, logo o coração batendo com força e depois mais lento e leve, leve como as gotas que pingam e reflectem já o sol em diamantes puríssimos de múltipla cor.

Mas o homem é um ser feroz porque a sociedade lhe cravou a marca da impureza e ele não consegue libertar-se. Também não quer. Ou talvez não queira. É mais fácil embebedar-se nos males do mundo cavando-os mais, afundar-se na droga para não ter medo do que não existe para além da sua imaginação, em vez de simplesmente planar aproveitando os ventos altos da escrita. As palavras bastam para aquietar as emoções, o bico passando a lavar, a alisar as penas na lagoa tranquila, as primaveras chegando em cada novo ciclo, em volta procriando, os novos seres abrindo.

Já cruzou o mundo, arrostou as tempestades e remou nas galés. Agora há outros navios e outros mareantes, deixemo-los velejar.

É tempo de olhar em volta, saber colher os frutos.
E que belos são!

5 comentários:

Manuel Veiga disse...

tempo de fincar raizes no vento!
belíssimo. sempre.

beijo

Nilson Barcelli disse...

Quem dera... mas somos assim, imperfeitos e teimosos...
Da poesia do Fernando pessoa nem vale a pena falar.
Do teu texto, digo apenas que ele é excelente. Parabéns pelo talento que sempre revelas no que escreves.
Boa Páscoa. Beijos.

Rocha de Sousa disse...

Sim,a raiva na própria pele, a luta
trabalhando com a morte. E nem um o
menor sinal de pacificação de bem-aventurança. O próprio Universo, em
convulsão aumenta em metamorfoses inimináveis, estinguindo-se estre-
las e surgindo milhares de outras.
Que fim levamos depois de sermos a-
bsorvidos por um buraco negro? Tudo
acontece sem o famoso bafo de Deus e a nossa morte não serve para nada,

M. disse...

A serenidade nas palavras, as tuas e as de Alberto Caeiro. Tão bonitas ambas!

Nilson Barcelli disse...

Vim à procura de mais...
Reli o teu texto, porque é maravilhoso. Não perde força por mais que se leia...
Boa semana.
Beijos.