«No Café Central, enquanto a bica não chega, tento fixar o olhar nos unicórnios de Júlio Pomar, que cavalgam a parede oeste em fundo azul-marinho, baixo-relevo, sem espessura, por onde a vista navega até ao oceano e às personagens míticas que o habitam. Com delírio febril interrompo a quietude dos bichos mitológicos, assim plantados desde o ano de 1955, conforme reza o quadro. Vejo-os correr livremente pela praça. (…) Reponho no quadro os irrequietos seres mitológicos, devolvendo à Praça da Fruta o ambiente próprio de uma manhã de domingo do mês de Maio: festiva, colorida, com legumes, flores, frutos e tudo, mas sem unicórnios, que só existem em misteriosos livros de mitologia, e no velho quadro de Júlio Pomar.»
Carlos Querido in «Praça da Fruta»
Nasci em África, onde passei a infância e a juventude, olhos postos na Europa dos meus maiores, na «Metrópole» onde morava a civilização. Assim mesmo, a civilização. O prosseguimento dos estudos, o bem-falar, o bem-escrever, os escritores que descobria; os vinhedos, os olivais, os soutos e os pinhais; os moinhos, os castelos, os lugares onde se desenrolavam as histórias da História que aprendi na escola.
Naquela época – e já foi há muito tempo – não havia televisão, não havia quem imaginasse por nós as histórias que líamos grafadas no papel, e assim a nossa mente elaborava os cenários com uma dimensão à medida dos nossos desejos, aumentados à lupa pela saudade dos nossos pais.
Quando o encontro aconteceu, as expectativas não foram goradas, mas o tamanho das coisas passou a ser real. O abraço foi quente e permanece o encanto. Ainda hoje tem chama, ainda hoje me afaga, me perturba, me enleva. Mas a cidade que então me acolheu, cansou-me: não era a Lisboa que os meus sonhos acalentaram, e só o tempo me ensinou a amá-la. É, ainda hoje, a «minha cidade» entre todas.
De África me ficaram as memórias, empoladas de saudade; da Europa a realidade que me envolve, mais anos já passados de presença do que ausência. O que me rodeia é cada vez mais próximo e gosto de ver o olhar dos outros a pousar delicadamente nele. Gosto de os ver afagar a sua região, dar-lhe as mãos, apontar-lhe as cores, os sabores, como quem lambe uma cria, como quem desvenda a sua forma de amar.
Caldas da Rainha tem muita História. E histórias bonitas contadas pelos seus.
6 comentários:
é autobiográfico? Um depoimento maravilhoso. Tb escrevi um conto que parte de um quadro, como a sua epígrafe.
Beijo
Fui empurrado para o correio
electrónico, escrevi mais de
300 caracteres, puf, vou en-
viar um email
gostei muito do teu texto. e dã "contaminação" de afectos que te povoam...
... sobre as Caldas da Rainha, permito-me lembrar o poeta Armando Silva Carvalho. excelente.
beijo
Quase diria que a minha "África" é a cidade das Caldas, a Foz, Óbidos,locais de segredos, de iniciações, de nascimentos.
E depois, como o teu texto tão bem denota, a nossa vida se vai encarregando de nos ligar a outros lugares, de nos criar outras raízes, de nos dar outras praias...
Um beijo
Tentei colocar um comentário no poema de cima, mas não consegui. Escrevo pra dizer que gostei.
A mim também as Caldas da Rainha me tocam de modo especial. Ai as marcas que os lugares deixam para sempre!
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