terça-feira, outubro 20, 2009

Caldas da Rainha



«No Café Central, enquanto a bica não chega, tento fixar o olhar nos unicórnios de Júlio Pomar, que cavalgam a parede oeste em fundo azul-marinho, baixo-relevo, sem espessura, por onde a vista navega até ao oceano e às personagens míticas que o habitam. Com delírio febril interrompo a quietude dos bichos mitológicos, assim plantados desde o ano de 1955, conforme reza o quadro. Vejo-os correr livremente pela praça. (…) Reponho no quadro os irrequietos seres mitológicos, devolvendo à Praça da Fruta o ambiente próprio de uma manhã de domingo do mês de Maio: festiva, colorida, com legumes, flores, frutos e tudo, mas sem unicórnios, que só existem em misteriosos livros de mitologia, e no velho quadro de Júlio Pomar.» 


Carlos Querido in «Praça da Fruta»





Nasci em África, onde passei a infância e a juventude, olhos postos na Europa dos meus maiores, na «Metrópole» onde morava a civilização. Assim mesmo, a civilização. O prosseguimento dos estudos, o bem-falar, o bem-escrever, os escritores que descobria; os vinhedos, os olivais, os soutos e os pinhais; os moinhos, os castelos, os lugares onde se desenrolavam as histórias da História que aprendi na escola.

Naquela época – e já foi há muito tempo – não havia televisão, não havia quem imaginasse por nós as histórias que líamos grafadas no papel, e assim a nossa mente elaborava os cenários com uma dimensão à medida dos nossos desejos, aumentados à lupa pela saudade dos nossos pais.

Quando o encontro aconteceu, as expectativas não foram goradas, mas o tamanho das coisas passou a ser real. O abraço foi quente e permanece o encanto. Ainda hoje tem chama, ainda hoje me afaga, me perturba, me enleva. Mas a cidade que então me acolheu, cansou-me: não era a Lisboa que os meus sonhos acalentaram, e só o tempo me ensinou a amá-la. É, ainda hoje, a «minha cidade» entre todas. 

De África me ficaram as memórias, empoladas de saudade; da Europa a realidade que me envolve, mais anos já passados de presença do que ausência. O que me rodeia é cada vez mais próximo e gosto de ver o olhar dos outros a pousar delicadamente nele. Gosto de os ver afagar a sua região, dar-lhe as mãos, apontar-lhe as cores, os sabores, como quem lambe uma cria, como quem desvenda a sua forma de amar.

Caldas da Rainha tem muita História. E histórias bonitas contadas pelos seus.


6 comentários:

pianistaboxeador21 disse...

é autobiográfico? Um depoimento maravilhoso. Tb escrevi um conto que parte de um quadro, como a sua epígrafe.

Beijo

Rocha de Sousa disse...

Fui empurrado para o correio
electrónico, escrevi mais de
300 caracteres, puf, vou en-
viar um email

Manuel Veiga disse...

gostei muito do teu texto. e dã "contaminação" de afectos que te povoam...

... sobre as Caldas da Rainha, permito-me lembrar o poeta Armando Silva Carvalho. excelente.

beijo

Justine disse...

Quase diria que a minha "África" é a cidade das Caldas, a Foz, Óbidos,locais de segredos, de iniciações, de nascimentos.
E depois, como o teu texto tão bem denota, a nossa vida se vai encarregando de nos ligar a outros lugares, de nos criar outras raízes, de nos dar outras praias...
Um beijo

pianistaboxeador21 disse...

Tentei colocar um comentário no poema de cima, mas não consegui. Escrevo pra dizer que gostei.

M. disse...

A mim também as Caldas da Rainha me tocam de modo especial. Ai as marcas que os lugares deixam para sempre!