(…)
Os dois sabem que são doidos, estendem os dedos na escuridão
entre as luas. Os dois sabem que mais adiante podem arder
de repente no meio do Verão, consumidos pelos segredos
e pela indiferença. Noites sem sexo são perfeitas, também;
e raras, e condenadas e incompletas. Borboletas no estômago,
batendo asas contra todas as paredes do corpo – não deixando
que ele adormeça, inquieto e insatisfeito, voltado para dentro
e para o passado. Românticos que se encontram quando nenhum
deles esperava outra oportunidade, outro caminho. Nunca estamos
preparados, diz um. Nunca estamos, repete o outro, quando
a primeira borboleta sossega depois de um beijo em dívida.
Francisco José Viegas
O palácio da vida é sumptuoso e vário. Sempre uma escada, aberta em degraus mais ou menos íngremes, mais ou menos largos, mais ou menos arredondados. Mais ou menos espaçosa, quantas vezes apertada entre paredes de pedra húmida e negra.
Subir é preciso. Na escalada emergem os momentos de prazer e de raiva, de esplendor e infortúnio. Crescem o musgo a hera, os fetos, a manta clara e ovo das primaveras. Dos patamares periódicos surgem as mãos que nos damos, as amizades, os amores, os desamores, a aprendizagem do convívio, as dores da separação dos afectos, o caminho árduo da sobrevivência. Por entre a cor, as flores, os pássaros chamando a vida, a chuva escorrendo, a tempestade troando, a água afagando as rochas, desejando-se em rios, perseguindo o mar.
Cumpre a nós escolher os passos, alisar as pedras, amainar as tempestades que pisamos, porque o caminho é de retorno. De retorno à solidão em que surgimos no caminho primeiro de chegada à vida. E a sabedoria está onde é preciso ser firme, equilibrar-se sem corrimãos onde os patamares escasseiam e um único piso se abre em galerias de perder a respiração.
Percorrer então uma a uma, vagarosamente, as penas que nos cobrem tornando-nos mais leves, o espaço abrindo-se. A águia sobrevoando o ninho. O cisne mirando-se no lago. Quem sabe o beija-flor prestes a ser comido pela serpente.
4 comentários:
Subir é difícil, descer também. Mas
essa realidade é própria do fio da
nossa condição, fas parte da estru-
tura do ser humano,biológica e psi-
cológica. O sonho faz parte disso e
os surrealistas procuraram petrifi-
car as respectivas imagens, prote-
ger tudo com a eternidade, na for-
ma de um ver que se antecipa às me-
tamorfoses do acontecer.
Bela, e consoladora mesmo debaixo
da chuva, é esta prosa de Jawaa, é
esta visão da vida que a faz afir-
mar -- «saber é ser firme». Diante
de um planeta ainda florido, povoa-
do de pássaros lindíssimos, gazelas
correndo, elegantes cavalos juntan-
do trotes na planície amarelada, o
homem ainda contempla na margem de
todosos rios.
Jawaa passa-nos algo desta beleza,
olhando em volta, numa paisagem ro-
mântica. Mas a lucidez da sua men-
sagem é implacável:
«Quem sabe o beija-flor prestes a ser comido pela serpente?»
«Saturno devorando o próprio filho»,célebre tela de Goya, ante-
cipa a hipótese cósmica, da raiva
humana, em que o horror devora a beleza.
É preciso subir para estarmos aten-
tos aos sinais.
Rocha de Sousa
Assim é. Como gostei de te ler!! Muitos beijos.
percurso com momentos de intensa beleza e provações, para os quais "nunca estamos preparados".
um abraço, jawwa
Neste lugar (Castelo Branco...) achei piada ao rei Filipe I, que Portugal esculpiu como um gnomo, ao lado dos "nossos"!
O retorno, que se queria sereno, diria até com alguma resignação pela imponderável escada/escala de viver.
(palavras que digo, sossego que procuro)
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