(…) Ser vadio e pedinte, não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, daquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor. (…)
Álvaro de Campos
Pobreza é aquela palavra que na escola antiga se acomodava à nomenclatura de substantivo – não ainda nome – não concreto, não visualizável como objecto com forma, tamanho ou volume, não palpável ao tacto. Teria sabor…? Odor…? Era um substantivo abstracto. Integrava-se mais no mundo da espiritualidade das palavras, era qualquer coisa que se sentia para além dos cinco sentidos estudados. Era um estado.
Quando muito menina, por essa altura em que esgrimia o concreto e o abstracto dos substantivos – de que agora nem é preciso ter a menor noção para se conseguir o 12º ano – não me recordo de me sentir incomodada com pobreza para além da palavra escrita com s ou com z. Pobreza era só falta de dinheiro e ser pobre era ser feliz, assim ensinava aquele texto do livro da primeira ou segunda classe do pai que trazia para casa um cacho de uvas. Pobreza era um conceito desejável porque era o caminho directo para o céu, ensinavam na catequese.
Havia ainda os pobres: eram os mendigos que passavam regularmente lá por casa, eram sempre pretos, sempre velhos. Havia um ainda novo, que caminhava velozmente com a sua muleta debaixo do braço e reclamava da nossa vizinha que o via chegar e logo dizia «vai com Deus, vai com Deus» sem esmola. Ele entrava no nosso jardim e dizia entre dentes «Deus é feijão». Talvez porque minha mãe não dava um prato de sopa como diziam os livros, mas tinha sempre um pão e cinco tostões, às vezes uma caneca de feijão. Não era pobre, aquele pobre de pedir.
Antigamente, antigamente, pobreza não existia. Não se sabia o que era. Quando se inventou a riqueza, então, surgiu a pobreza. E a riqueza consome a água dos lagos imensos em África, as florestas da América, os gelos do Árctico, destrói o ambiente dos povos que sempre viveram do que a terra lhes proporcionava, destrói a fauna e a flora dos continentes, destrói os outros sem piedade, sempre os outros, para que nós possamos ser ricos, ter mais do que o necessário à sobrevivência.
Eis que a pobreza chega até nós. É uma avalanche imparável, porque é imensa e cruel, é a pobreza de bens e a pobreza de espírito que nos assola. E nos consome.
Então queixamo-nos dos outros. Sempre dos outros.
5 comentários:
"nomenclatura de substantivo". Vou tomar nota e se a Dona Jawaa não se importa, um dia destes uso lá no meu sítio.
Pobreza é a falta de bens essenciais que satisfaçam o mínimo das necessidades básicas, mas é acima de tudo a falta de princípios éticos, de vergonha, de dignidade.
"quanto pobres são necessários para fazer um rico?..." - proclamava Almeida Guarrett vai para dois séculos.
... e o eco dessas palavras indignadas perdura em nossos ouvidos. ainda...
gsotei muito.
beijo
Bela e justa, e a propósito, esta visita, a começar pelo genial Álva-ro de Campos, pela tormentosa ideia
de pobreza, coisa que nasce da pri-
tiva vertigem do «mais forte»,apon-
ta a tutela do mais forte, os vis triunfadores que a livre circula- ção dos bens e de trocas sombrias instalou um pouco por toda a par- Foi preciso derramar muito sangue, instalar muitos deuses e esperan-
ças,forjar prémios e a salvação garantida depois da morte, para opacificar os melhores sentimentos da naturalmente vil humanidade.O ser humano, mesmo quando se convence de que é bom e faz o bem. Ideologicamente, no cinismo das suas relações em sociedade,o homem continua um primata cuja sorte lhe implantou um cérebro robusto, topo de gama,mal servido, aliás, por um corpo feio e de há muito obsoleto.
Ninguém é pobre. Ninguém é rico.
As diferenças, cada vez maiores, decorrem das vagas inúteis de pro-
dução multiplicadora, imensos contos do vigário, na roda cínica dos mercados livres, falsamente supervisionados, onde a audácia de alguns fica livre para desviar, desajustar, desinseminar os outros.
Assim, com o poder todo nas mãos de todos os ricos, o apodrecimen-
to, que a tecnologia favoreceu a
parecer «estabilidade», derrama-se entretanto pelo mundo no limite da pobreza. O retorno só poderá ser
aceite quando a supervisão e o do-
mínio dos bens estratégicos esti-
verem de facto submetidos a gran-
des e vigiadas estruturas de con-
trolo, um banco de dados e de si-nergias que acautele de facto uma
justa distribuição dos frutos da produção, sem o visionarismo do
crescimento selvagem, sem a ce- gueira do consumo e a rasteira de
aumentos insustentáveis de neces-
sidades.
Obrigado pela sua PERCEPÇÃO
Rocha de Sousa
Tudo o que a Justine declarou e Álvaro de Campos declinou e tu constituíste história de "vidas".
... e fico confrangida com "amargura" desamparada que sentem os pobres. Os pobres do essencial de viver.
A palavra, para mim que vivi em Portugal envergonhado, tem cheiro.
Bjinho
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