quinta-feira, abril 17, 2008

O Vento


...Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte

e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.
Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão

felicidade a ninguém.
Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.
Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.
Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raul de Carvalho



O Namibe, ao sul de Angola
* Imagens tiradas daqui

O espectáculo da natureza não tem rival.

A rosa resplandece entre o sol e a chuva. Abre, altiva, o seu rosto ao vento, o corpo inchado de humidade, as raízes acariciadas por solo fértil, o ar enchendo de calor os pulmões. O tempo de cada flor é breve, floresce em uma primavera, mas o perfume perdura em ondas, na sinestesia da cor, na leveza e no dispor das pétalas, na multiplicidade de tons, ou num só, como um sorriso.

Nem sempre a chuva lhe toca manso. Nem sempre o vento lhe murmura melodias brandas, mas sempre lhe conta de outros lugares, de outras latitudes onde a chuva não cai e o sol fere de morte os seres. Dos homens e animais que caminham ainda, indefinidamente, guiados pelas estrelas, esquivos do mundo, dos horários, da globalização, felizes na sua ignorância dos novos tempos que assolam as almas. Procuram incessantemente a água dos poços, o deus, a deusa palpável que teremos adiante. De horizontes vastos de imensidão infinita onde o sol se funde e cria vapores de quente, onde nascem e se desconcretizam os sonhos dos homens, apagada a miragem.

Um dia as rosas cresceram lá. Um dia a floresta deu sombra, os lagos cobriram a terra, os rios serpentearam.

Agora a areia cresce para nós, ameaçando as rosas.

9 comentários:

Rafael Almeida Teixeira disse...

Seus poemas em prosa, aguça minha sinestesia.

Afetuosos abraços para você amiga Jawaa.

Rocha de Sousa disse...

Agora o deserto, uma grande beleza
ensurdecedora, como metáfora sobre
a morte das rosas breves, alegoria
da inversão dos factores e dessa
anunciada catástrofe que não vem só do planeta, é também desencadea-
da pelas nossas mãos. Mantemos a esperança, sacudimos as melancolias
mórbidas. Criamos. Usamos a arte como marca da civilização que ainda
não deixámos de ser. E assim, o quotidiano, na sobrevivência. Alguém escreveu há tempo que «todos
os dias vivemos os nossos pequenos
apocalipses como se nada fosse...»
Até brevo. Estou sempre à escuta.
Rocha de Sousa

M. disse...

Belíssimo este deserto falado por ti.

Rui Caetano disse...

Uma maravilha. adoreo os textos.
um bom fim de semana.

Eremit@ disse...

trouxeste um grande poeta do século XX tão ignorado. Obrigado por isso e pelo poema.
O deserto fascina. E o texto leva-nos. Arrasta-nos.
Já viste o Jogo das 12 palavras lá pelo Eremitério?
Se quiseres participar vai até lá. Gostaria.
Fraterno abraço e bom fim-de-semana.

Justine disse...

Texto muito bem escrito, a sublinhar imagens igualmente belas.
Ou serão as imagens a iluminar o belo texto?

Manuel Veiga disse...

gostei muito do poema. mas o teu texto é magnífico. como uma miragem no deserto.

abraços

bettips disse...

Sonho o deserto, numa noite em que só estrelas e silêncio. Ondular.
Mas isso é vício de clima temperado (?!) porque a ameaça é real. Tão bonito o teu pensar no deserto...
Bjs

Sant'Ana disse...

É fácil esquecer. Dificil é lembrar o aroma das rosas. E de tudo o que o deserto encerra fundo.