– Dotô, ela vai podê ainda pari?
– Vai, sim, Giribel. Não afetou em nada a patada da onça.
O doutor foi para o canto e riu para o povo.:
– Pronto, minha gente. Agora toca todo o mundo a dormir. Estou um bocadinho cansado…
O pessoal foi saindo, respeitosamente. O cómodo ficou vazio. Só então apareceu a mulher-dama, enrolada em gaze.
– Posso levá ela pro meu rancho?
– Não, Giribel. Deite ela com cuidado ali naquele canto. Se você mexer nela, ela morre.
O menino, com uma ternura imensa, levou aquele corpinho adormecido para o local indicado. Era nada mais que um animalzinho… uma cadelinha…
Depois perguntou a Madrinha flor:
- Posso posá aqui, Madrinha? A muié-dama pode percisá de argumas coisa…
O poder dos afectos prolonga a vida.
Nem há muito tempo, um cão a fingir, sem dois quilos de peso, pelo raso em tons de mel, elegância de impala no corpo esguio, nas patas longas e orelhas em riste, por quase três lustres integrou a matilha humana de nossa casa.
Partilhou alcovas e sofás, praias e serões familiares, dentro de um bolso mais avantajado ou na sua cesta de vime própria de felino, em que vezes sem conta ficou a repousar na cozinha de restaurantes com o aviso prévio de que «não era para ser servido à mesa».
Deambulou de scooter com os donos mais novos por campos e praias, de orelhas ao vento, quantas vezes entre a t-shirt e o peito do seu menino, cabeça emergindo qual gravata original. Sofreu dissabores no receio de ver alterado o seu lugar na matilha por uma andorinha resgatada ao frio e ao abandono, por pouco tempo embora – só até ela poder voar no espaço da Fonte da Senhora.
Envelheceu ao mesmo tempo que os seus meninos ganhavam asas. Foi-se habituando a rituais mais calmos, o reumatismo chegando, o coração pequenino (grande!) cada vez mais frágil.
Um dia tombou ao fundo do corredor, de lado, ficando imóvel.
Corri para ele, levantei-o, abanei-o, lembrei-lhe repetidamente que estava ali e que gostava muito, muito dele. Em lágrimas vi que voltava à vida. Kwacha, a alvorada, o nosso cãozinho guerreiro recuperava as forças. Não voltou a ser o mesmo, a crise repetiu-se uma e outra vez.
Morreu no dia – lindo como ele – em que chegou a Primavera de 99. Igual a si próprio até ao fim, ladrou, agrediu ainda a Morte quando a sentiu chegar. Esticou muito as suas orelhinhas a ouvir até ao último momento a voz da dona que o acariciava repetindo o seu nome.
Repousa, frente à casa dos que partilharam tudo com ele durante os seus 14 anos de vida, debaixo de um vetusto sobreiro, e duas roseiras foram plantadas para que ele possa continuar a olhar-nos com aquele olhar doce de muito amor que sempre nos dedicou em exclusividade total.
Os homens também são bichos.
10 comentários:
Texto muito bem escrito e cheio de sensibilidade. Não há dúvida de que, em certas ocasiões também somos bichos, mas, por vezes, somos tratados pior do que muitos cães.
Que bonita homenagem. Este "bicho" era especial. Durante mais de dez anos, aquele cão pouco convencional, fez parte da familia de outros que, de apelido, também tem o nome de um outro "bicho", mas de bico. Não há um só registo em video, dos convivios familiares daquela epoca - saudosos anos 90 - em que não se oiça, em ruido de fundo, o reclamar constante do "bicho". Béu béu béu béu! Não dava sossego! Mas com o tempo, lá foi conquistando um a um todos os elementos da familia. Impôs-se, e não foi pelo tamanho, garanto!
Um beijo com um Pingo de nostalgia, porque hoje, através do seu "bichinho" recordei tanta coisa boa!
Lindíssimo, Jawaa!
Olá jawwa
O texto de José Mauro de Vasconcelos, lembrou-me África e o que eu deixei de mim lá, para sempre.
E,depois, maravilhosamente bem escrito, dás-nos a conhecer instantes da vida do "bicho" cão.
Abraço, Jawaa
O poder dos afectos prolonga a vida
Rocha de Sousa
Acima de tudo muita sensibilidade na escrita...Adorei...
Também... e tantas vezes até há nisso nobreza...
Dark kiss.
Um molho de afectos embrulhado num excelente texto...
Abraço.
Olá Jawaa
Deixo-te um abraço e o desejo de um lindo fim-de-semana.
Texto literariamente belo...
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