sexta-feira, outubro 26, 2007

A Descida

«Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas


Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio


Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação


Não posso adiar o coração»

António Ramos Rosa














































Eu tenho um pote de ouro, antigo.

Tiro a tampa devagar e está cheio de poalha solta e leve.

Meto os dedos nela e sinto um frio doce, macio ao toque, escorregadio.

Retiro uma porção e olho a mão aberta, brilhos espalhados, o mundo inteiro ali, pedaços de papel cor de sépia, dizendo lugares, momentos, gentes que eu nem sei, outras que não estão, outras estando, que já não são.

Assaltam-me frequentemente dúvidas quanto ao facto de sermos nós a escolher a vida que temos. Ela simplesmente acontece.

Nascer ou não em berço de ouro.

Nascer órfão de tudo.

Faz toda a diferença, cedo encontrar quem nos faça entender quanto é importante ter-se consciência do que somos e do que queremos ser, e que o sucesso de uma existência está na força interior que nos leva a ultrapassar barreiras, a derrubar obstáculos, a vencer os limites que nos são impostos. Mercê da idade, do sexo, da religião, da cor da pele, do clã a que pertencemos por nascimento, da sociedade que nos molda o carácter, que nos impõe as regras, que nos faz ver o mundo através do seu olhar.

A educação e a cultura devem facultar as outras objectivas, outros ângulos, outra luz.

Ver diversamente, alguns cedo, outros mais tarde, outros nunca conseguem.

Porém, todos rolam o seixo para a montanha, cada vez mais alta, cada vez mais íngreme.

A diferença, o que nos torna únicos, é o prazer na descida.



3 comentários:

Rui Caetano disse...

Gosto muito da poesia do António Ramos Rosa, e também acho que não se deve adiar o coração. A educação é fundamental para o futuro de qualquer sociedade.

Vladimir disse...

Qual é a sua opinião sobre a desconfiança?

bettips disse...

Sempre a memória, essa doce ou agreste provocação. Gostei muito deste pote mágico! Bjs