Também tenho o meu rosto na multidão: Joana estava a sorrir quando a vi de mais perto, talvez apanhada por essa coragem que parece tomar conta das pessoas na vertigem das maiores tragédias, e agora ainda a descortino imóvel, contra um oceano de mãos acenando freneticamente na direcção de todos nós. Há outros casos assim, gente rara, em estátua, ou chorando sem o menor sinal de alarme. (…)
(…) Baixo os olhos e aponto a caneta ao papel. E marco a folha, em raiva: «Já não sou capaz de olhar o homem que chora.» Fico com os dedos enclavinhados no bloco de notas e no jornal, comprimindo o corpo contra a amurada, contra o seu bordo de madeira e verniz, e oiço apenas os gritos da multidão a sangrar. Bruscamente, percebo que algo de indefinido se quebrou dentro de mim. Um fio de alma, uma força, uma ligação lógica entre afectos.»
Rocha de Sousa, in «Angola 61»
A escrita tem um poder enorme. Mais do que qualquer imagem, a escrita, a boa escrita, é tanto ou mais do que a imagem. Ela pinta várias imagens numa tela só, ela traduz um, vários sentimentos de uma, de várias pessoas, faz ver uma sucessão de quadros, veicula som, movimento, tacto e acorda sentimentos indizíveis nos leitores. Sou pouco versada em artes plásticas, já o disse aqui. Posso parar extasiada diante de uma obra de arte, ela passar para mim fortes emoções e sentimentos, mas a escrita é outra coisa. Gosto de ler. Sinto-me bem a olhar as letras entrecruzando-se em palavras, em frases, em sentido,
Os meus aqui, porque são a outra face da moeda, que não vê esta, fera açulada na espera de que os seus venham em seu auxílio, e não pode ser tão doloroso assim estender uma mão a quem se afunda no medo do terror que alastra. «O meu filho vale mais que uma província!».
Como é que se pôde chegar a isto?
António Lobo Antunes tem mestria absoluta em algumas das suas crónicas. Quase todas, direi (não conheço a sua obra na totalidade, mas alguns livros custaram a ler: a compreender, a entender o conteúdo, a expressão e a forma. É natural – é voz do povo que Deus, que é Deus, não agradou a todos). Mas daí a que diga, numa das suas últimas entrevistas, não tenho a menor dúvida de que não há, na língua portuguesa, quem me chegue aos calcanhares, vai um passo de gigante.
Porque há. Não quero citar nomes – quem sou eu –, mas há. Há também aqueles que já foram galardoados com Prémio Camões. E não só.
8 comentários:
Pois... Faz-me confusão que o ego do Lobo Antunes seja daquele tamanho...
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O texto de Rocha de Sousa... Sim, tem muita força.
Olá
O teu "olfacto" perscrutador está aqui em evidência.
Entender a vaidade humana, é tarefa ardua.
Abraço
Abismado. Como conseguiu o livro. Agradecido: tudo é factual, apesar da ficção de alguns olhares e as cartas. Supere a dor. Se alguém escreveu um livro assim, com amor, saudade e sonhando futuros, valeu a pena ter estado lá.
Agradecido Rocha de Sousa
Concordo plenamente , a escrita ,a escrita bem escrita ,não mais é do que um belo quadro pintado .
Bom fim de semana .
Eu acho apenas que o Lobo Antunes sabe o que vale e não tem a hipocrisia de fingir que não sabe. Quanto a ser o melhor ou não, sabemos que cada cabeça sua sentença... Mas, em minha opinião, é o maior escritor português da actualidade, mesmo que seja difícil de ler, por vezes.
Eu li essa entrevista e também achei demasiada arrogância da parte do Lobo Antunes. Embora seja um grande escritor, existem tantos e tantos escritores da língua portuguesa melhores do que o Lobo Antunes.
Voltei a este lugar e estive a ler
um começo de partida que alguém es-
creveu para mim. Devo-lhe já muito
pela divulgação que faz dos meus trabalhos. Mas cautela: Lobo Antu-
nes chega-me aos calcanhares...
É muito importante o seu texto e a aproximação das pessoas balbucian-
do coisas sobre o mestre e acenando
que sim às palavras do amador empe-
nhado. Deus não me calhou em sorte,
mas o seu reconhecimento, a coinci-
dir em tantas coisas da escrita,foi
outra sorte - da nossa responsabi-
lidade.
Obrigado por tudo
Rocha de Sousa
Que encanto tens no que escreves...
Doce beijo
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