quinta-feira, setembro 20, 2007

Infância


O regresso às origens deve ter o seu tempo em cada um de nós.

Nunca voltar porque os outros voltam.

Não voltar se nunca o tempo for propício.

Viriato da Cruz é um nome grande na poesia primeira africana de expressão portuguesa sem necessitar de apresentação. Por puro acidente, num livro de Cartas de África e Alguma Poesia coligidas e seleccionadas por Salim Miguel, revelando correspondência assídua, em meados do século passado, entre jovens escritores brasileiros de Santa Catarina e as então províncias portuguesas de África, encontrei um poema de Viriato da Cruz – dedicado a Agostinho Neto – que me encontra menina, quando anseia que «cada criança goze a infância como se comesse uma maçã de aurora e de mel» na terra em que nasci:

«Para além da alegria multímoda deste parque acolhedor

– tarde soalheira! Florões amarelos o cicio do vento

nos ramos balançando balançando dos altos eucaliptos.

Para além do olhar amplo mar manso das crianças

um olhar contendo a confiança nos homens

e a certeza de vida no futuro

Para além deste par enamorado um ao outro harpando

a doce música do amor

Para além desta meiga presença de minha mãe

na carta que ontem me escreveu

Para além de quanto me dá esta emoção positiva, eu vejo

a mão no arado, a mão no tear, a mão na enxada, eu vejo

o tubo de ensaio suspenso da mão paredes subindo debaixo

da mão

a agulha na mão debaixo da mão tachos no fogo que a mão

domou, eu vejo

cabeças na escora da mão pensando aumentar da mão o

poder, eu vejo

o livro na mão o Homem a Mão, eu vejo

o trabalho crescendo na Paz criadora oh a Paz

– o modo humano da existência fecunda!»

Viriato da Cruz

Nova Lisboa – Angola, 1953

3 comentários:

Isabel disse...

Olá minha amiga,
Gostei muito do poema, pelo poema em si e porque acabaste de me apresentar um poeta que apesar de dispensar apresentações eu não conhecia.
Cruzam-se todos os caminhos e os das palavras também. Não me tinha ainda cruzado com as palavras dele e filo hoje através de ti que considero entre muitas outras coisas pelo bom gosto e sensibilidade literária.
O regresso à infância, às origens, faço-o permanentemente, vou e venho, vou em busca do sorriso perdido e que nem lembro e regresso vazia de sorrisos.
Regressava.
Agora encontrei em mim sorrisos novos.
Talvez os novos me deixem encontrar os outros passados e perdidos mas que acredito terem existido um dia.

Um grande abraço

Isabel

paulocosta disse...

Bom encontro, sem dúvida.

M. disse...

Gostei muito. Não conhecia.