Amanhã chegam as águas.
– Ti Chico, mas isso foi noutro século!
– Pois foi! Que idade julgam voceses que teria o pai de meu pai se fosse vivo? Que idade julgam voceses que eu tenho?
É verdade. O Ti Chico é mais velho do que podemos supor assim à primeira vista, a olhar para o seu corpo ainda rijo e… enxuto.
Talvez por isso não tenha querido as guelras. Prefere a injecção e escreveu isso – com um X – no quadradinho respectivo. Que está demasiado velho para se reciclar em peixe.
Muitos velhos preferem a injecção. Pode parecer macabro, mas a Comunidade viu-se obrigada, por razões de pragmatismo e também de respeito pela escolha individual, a implementar esta forma, o mais indolor possível, de as pessoas dos povoados a submergir perderem a condição de vivos, em absoluto, e não apenas a condição humana, ainda que apenas num plano parcial. Que posso eu dizer? São escolhas. Apesar de tudo, a alternativa entre a operação e a injecção ainda é uma das provas de que a Comunidade é uma sociedade livre.
– E o que eu ia fazer para debaixo d’auga? – resmunga o Ti Chico – só ia empatar – acrescentando: – Ao menos assim sei o que me acontece.
Uma semana longe da casa lusitana, bem aqui ao lado, pelas calles da capital, chegou para ouvir com mais realismo o fado português.
Parece que a música e o folclore revelam bem o espírito de um povo: desde o samba no Brasil, onde o fado nem sempre foi (nem é para a maioria) auspicioso, ao bailado flamengo que passa a quem assiste – mesmo perante a intensidade dum dedilhar de guitarra e uma voz dorida clamando a dor – uma entrega ao movimento, ao silêncio que se mantém até o apelo para as palmas e o incentivo que surge da plateia a louvar a garra do sapateado.
Voltando à música, felizmente o fado tem seguido em frente com outros contornos de que podemos orgulhar-nos, mas o folclore português é pobre de movimentos, austero, monocórdico, fechado, do vira nortenho ao corridinho algarvio fica-se pela beleza dos trajes, quando existe. Parece que lhes falta a alma.
Diz António Barreto, com propriedade, que a riqueza em Portugal é escondida, as pessoas querem ser moderadas no gesto, manter uma aparência humilde, cultivar a modéstia à boa maneira de outros tempos.
Não ostentar, sequer o riso.
Pois eu gosto de sair e olhar a diferença, reconhecendo a minha ânsia de espaço, não só de quintal mas de bosque, floresta, rio, mar. Gosto do meu canto, da minha sala, da minha casa, do meu país. Acho-o lindo. Mas precisa de mais alma. Terão sido os anos da ditadura que nos marcaram e a marca de água permanece para além da imigração que aceitamos por vezes à boa maneira colonialista, da emigração que continua a verter o sangue arterial deixando o venoso circular nas veias esclerosadas.
Pelas calles (de las Huertas), pisam-se pomares de Calderón, de Vega e Cervantes, em letras de ouro; mantém-se a traça dos edifícios e mora gente na cidade antiga; o Prado aparece nos varandins do Paseo, que não se fez avenida. A água e o frescor das árvores cortam o excesso de calor no Verão e os teatros enchem-se à hora certa. Em época baixa, os Espanhóis acorrem a Madrid com as crianças pela mão, para que conheçam o seu país e a sua História.
Em Portugal, a escassos
Nós temos tudo o que eles têm. Mais ainda, desculpem a imodéstia.
Falta-nos saber clamar a nossa riqueza!
6 comentários:
O texto de Rui Zink : aquela delícia de amarga ironia!
O teu texto: não sei se nos falta alma. Fico sempre com a sensação de que mataram qualquer coisa em nós, como povo. E não sei se será possível recuperar esse "qualquer coisa..." **
O Fado... já era. Como muitas outras coisas... pastéis de bacalhau ainda vai havendo... :)
Dark kiss.
Um bom resto de semana. Beijo.
Tens a razão toda. Ainda há alguns meses, numa pequena cidade da fronteira, via toda a gente a sair à tarde, imensas crianças, tudo a conversar nas esplanadas!! Aqui só se olha, invejazinha... Há falta de amor próprio. E também tenho a sensação da Vida de Vidro, uma falta qualquer... E estavam as árvores todas no Passeio do Prado? Abraços
Em comparação com os espanhois, falta-nos realmente, alma, entusiasmo, risos. Em Espanha vemos todas a sair do trabalho com cara aberta, a correr para o passeio ou para o bar mais próximo. Aqui, vêem-se rostos fechados, a enfiarem-se nas camionetes que os levarão para casa, para os subúrbios onde outras tarefas os esperam, sem espaço para um intervalo feliz.
De volta ao prazer de te ler.
Um beijo.
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