quinta-feira, junho 14, 2007

O que fazem os anos


«…Estou parado no mundo.

Só sei escutar de longe

antigamente ou lá para o futuro.

É bem certo que existo:

chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga

se não sei nada e desaprendo?

A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber:

que a ciência aprenda comigo

já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo

que fica no alto das montanhas

e não desce à cidade

e sobe às nuvens que andam à procura de forma

antes de desaparecer…»

Almada Negreiros




Eu tenho alma serrana, sinto-o cá dentro. Estou bem nos cerros do Calpe com Herculano, gosto das penedias e lameiros do Torga, da neve nas serranias do Aquilino. É verdade que me delicio com a Sintra do Eça e me assombro com os Andes de Neruda. Mas os meus olhos ficaram na montanha que acolheu o último dia da ingénua e destemida cabrinha de M. Séguin: nunca os abetos tinham visto nada tão bonito; os castanheiros dobravam-se para acariciá-la com a ponta dos seus ramos, as flores douradas e as campânulas azuis espalhavam perfume em seu redor. Toda a montanha a recebeu em festa! E tanta erva! Ervinha doce, saborosa, fresca, fina, feita de mil sabores...!

A água dos regatos e rios encanta-me, toda a paisagem de grandes lagos e arvoredos entre montanhas me fascina. Revisito estes lugares com a mesma emoção com que passeio pela fazenda da minha infância, com a mesma fé com que bordo as letras dos lenços de namorados, num alpendre florido duma casa, algures numa aldeia pacata deste nosso país de belezas sempre renovadas de uma natureza que ainda vai sendo fértil.

Mas a cidade é logo ali, se cidade se deveria chamar (para mim, cidade, é cidade grande, como dizem nossos irmãos de além Atlântico). Nos tempos de hoje, o ritual do café impôs-se em todos os lugares, em todas as camadas sociais, em todas as idades, em todos os sexos. Na «minha» cidade, proliferam cafés a cada esquina e eu tenho preferências, sem ser fiel a nenhum. Quando saio a seguir ao almoço, o café depende do que me leva à cidade: se às compras, o do supermercado serve, pouco agradável, com os cheiros de comida e ruídos que ferem os tímpanos; de Inverno e boa companhia, que seja onde o sol entre e aqueça as almas; de Verão, o ar livre, na esplanada ou no parque. Quando estou só, o meu preferido é um espaço grande, simpático, cheio de gente nova e alegre, estudantes e gente bonita. É perto da biblioteca onde leio os jornais que não compro, onde recolho um ou outro poema novo. O empregado é um jovem, muito jovem ainda, de cabelo quase rente junto à nuca e nas têmporas, no alto ponteado a gel, de argolinha na orelha, muito educado: tomei a liberdade de trazer-lhe um cafezinho cheio… muito obrigada, retribuo com simpatia.

Ontem fui ao cabeleireiro e tive de esperar meia hora. Desci ao café renovado, bem no centro, onde não foi possível substituir os empregados gémeos, porque donos da casa, idênticos até no bigode. A doçaria permanece, o pão-de-ló regional e a freguesia: essencialmente mulheres de meia-idade conversam alto, não me atrevo a ouvir o que dizem num timbre de voz análogo, deselegante como os seus corpos que se não escondem ao Verão que chega, mau grado o ar bisonho; na mesa ao lado, uma jovem acende um cigarro e lê a Maria; perto do balcão, uma velhota simpática, pequenina, gorducha, de cabelo grisalho, entrançado e enrolado na nuca, com ar feliz, acompanha a netinha e olha-a embevecida a comer o bolo e a sorver um sumo por uma palhinha às cores.

Há-de haver uma televisão por ali, ou antes, um plasma. Não reparei.

Usei a civilização, como preciso e convém.

Regressei à aldeia.



3 comentários:

Paulo disse...

Escuta apenas, não digas nada.
Escuta o uivo dos lobos, a «sinfonia» das cigarras, o cantar dos galos, o ladrar dos cães, os chocalhos do gado, a voz do carteiro, os sinos da igreja e, quando poderes, tenta ouvir os ecos da cidade esse espelho facetado onde - levados pela ilusão - nos revemos magicamente favorecidos...
Mas uma coisa parece certa: "o sonho comanda a vida"...
Paulo

M. disse...

Gosto muito da tua maneira de falares da vida. E gostei muito que tivesses ido saber de mim. Obrigada pela ternura com que o fizeste.
Um beijo.

Anónimo disse...

Gostei muito de ter visitado o teu blog. Gosto do teu tom, da tua sensibilidade.
Yemenaf