«...
Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me
lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer
ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso.
Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a
minha mulher. Vou ter de habituar--me. Não sei se me habituo.»
Rodrigo
Guedes de Carvalho
Mr.
Binx era um senhor.
Manso,
cordial, majestoso. Chamavam-lhe Lord Binx, tal a dignidade com que
se investia da mesma placidez quer perante a paisagem branca da neve que
se acumulava do outro lado da janela quer entre as orquídeas que
trazia o sol quente das primaveras.
Do
aconchego do fundo da cama nos invernos longos, erguia-se com
pontualidade inglesa para a primeira refeição, que exigia com falas
doces a quem com ele partilhava a vida. E era compreensivo. Sabia
esperar, vigiando a chegada de cada um ao fim dos dias solitários
pela casa que deixavam à sua guarda.
Mal
os primeiros bolbos de jacintos e narcisos furavam a neve, fofa da
temperatura mais amena, abrindo cores a anunciar o verão, Mr. Binx
preparava a agilidade para os primeiros passeios de fim-de-semana nos
jardins, a quedar-se em esperas por algum chipmunk incauto ou esquilo
ou passaroco, o verão a apetecer-lhe já, num gozo antecipado.
Era
vê-lo então, nas noites quentes dos julhos, escutando os recantos
mais secretos, farejando os odores pelas verduras e flores, já a
água cantarolando no pequeno regato, límpida e fresca. Manhãzinha
e Mr. Binx, cansado da estúrdia da noite, sentava-se com o seu porte
habitual na pedra grande junto à soleira da porta das traseiras, até
que um assobio lhe dava o sinal para recolher a casa, para o descanso
merecido, enquanto os seus irmãos humanos iniciavam a labuta diária.
Apreciava
sobremaneira os passeios de fim-de-semana prolongados ao longo do
lago Ontário para a pesca. Novos lugares, novos cheiros, espaços
largos, a segurança de escutar o assobio quando já se sentia
perdido, embriagado pelos ventos e odores insuspeitados. É que os
anos iam passando, o corpo a pesar, e os sentidos a mentirem cada vez
mais.
Longe
os tempos da juventude, quando o seu amigo o deixava liberto em casa
térrea, entrando e saindo a seu bel-prazer, indepententemente das
estações do ano. Mais elegante, mais musculado, a neve não o
impedia das aventuras no exterior, encontros por vezes desagradáveis
com os pouco amistosos racoons. Porém o tempo não perdoa e não lhe
deu mais tréguas. Bem sentiu a impotência de quem não quis
deixá-lo abandonar este espaço sem luta. Só que o destino é
inexorável e ele saltou para outra dimensão.
Mr.
Binx, Lord Binx, era tão só um gato.
Um
gato que partilhou durante dez anos a vida de um ser humano exilado,
o esteio que o não deixou soçobrar na solidão de um país
distante, desconhecido, frio, agreste.
Por
isto será para sempre recordado com gratidão, como um nobre, Lord
Binx!
5 comentários:
E, ainda bem, foi o desgosto da perda de Lord Binx que me fez vir aqui (ah...o tempo, esse ladrão!). Reler e ler a descrição tão comovente "de como um gato foi companhia" na distância. E ficar contente por (te)conservares aqui, com essa aptidão para os nossos clássicos da bela língua nossa, os apontamentos cheios de sabedoria/saudade. Uma nostalgia suave.
Para te mandar um abracinho, em breve os junquilhos...
B
Muito belo este teu texto.
Um abracinho.
amei o texto
beijo
Jawaa
que coincidência. e triste.
re_voltei hoje ao meu "Fios" e cliquei no teu nome para ver se ainda tinhas o blog.
também eu, na 2ª feira passada, perdi o meu Sr. Mim.
entendo perfeitamente o que estás a sentir.
por favor, diz-me como posso contactar-te (e-mail, FB se o tiveres).
beijos
Que bom que é reencontrar, depois de vários afundamentos, este belo espaço, cheio de alma e de um sentimento real, que faz sorrir e nos puxa as lágrimas.
Obrigado, Jawaa, por me permitir falar com este «além».
João
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