Que
alegria chegar àquela casa, que pena virmo-nos embora para tristeza do inverno,
a tristeza das aulas, o suplício dos professores. Já escrevia nessa altura,
versos, ninharias. Mas ia ser o maior escritor do mundo, isso era certo. Na
minha opinião sou, claro, não vale a pena escrever se não se é o maior escritor
do mundo. Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu
murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria,
tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que
passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades
disso também e, de repente, o maravilhamento de novo.
António Lobo Antunes
Na manhã ensonada,
palmilho a praia longa solitária sedutora na sua mansidão, a receber o mar em
carícias de espuma, o som dele chegando de longe e repetindo-se, a cor quase
negra do horizonte onde a neblina breve esconde o recorte das ilhas, cortado
mais perto por caracóis brancos enrolados sobre o azul, depois verde-mar de
beleza sem medida.
Caminho até aos
pescadores que se perfilam ao fundo, junto à foz do rio, alguns a meio da
embocadura do Arelho, sobre afloramentos de areia, a maré vazante a permitir a
travessia a vau para o Bom Sucesso, onde começam a surgir chapéus-de-sol e pára-ventos
coloridos. A praia mantém-se lisa, marcada agora por areia mais grossa,
pequeninos seixos marcando a descida da maré e pegadas espaçadas de algum
pássaro, talvez gaivotas que voam agora baixo, mais atentas aos despojos
humanos do que ao peixe do mar.
A lagoa começa a
encher-se de gente, crianças e adultos a aproveitarem a temperatura da água
mais amena, mais parada neste virar de maré. Não tarda o mar crescer impante e
correr com força lagoa adentro, em corrente forte e quantas vezes traiçoeira
para os mais desatentos, que a Natureza é um ser vivo e não se doma, temos nós
de nos afeiçoar a ela.
Retomo o caminho do
mar, do som do mar, da luminosidade que chega mais forte, das ondas que se
desenrolam brancas ao longe, acompanhadas já de pontos negros quietos, à espera
do momento de as cavalgar em equilíbrios precários. A praia aberta, sem vento,
o cheiro da maresia a entrar pelas narinas traz um momento brevíssimo de regresso
à infância, de repente a sensação de faltarem as conchas, as pedras, os caranguejos,
a vontade de mergulhar.
Ao cair o meio-dia o
sol torna-se feroz, a luminosidade cega e o murmúrio das ondas perde-se atrás
das vozes humanas. Regresso ao carro e assombra-me do destempero dos que chegam
àquela hora em que o sol fere, crianças pela mão, a irresponsabilidade à solta,
num assalto do mundo que esqueci naquelas horas breves e fundas. O meu acordar
para a vida que nos espera confusa, a meada que não consegue dobar-se, a meada a enrolar-se cada vez em nós mais apertados, o puxar obstinado do fio quando se
deve deixar mais lasso, capaz de dar-se-lhe a volta, voltas, encontrar o
caminho de novo.
1 comentário:
lucidez dorida atravessando o "destempero" dos outros...
beijo
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