quinta-feira, março 15, 2012

Espera


Do outro lado da parede fibrosa, atrás da mesa verde, um sonho de retorno identifica-se com o nosso próprio corpo rendido, com os degraus do espaço e do tempo, acabando por se contrair para a dimensão corrente do visível, de novo o lado de cá dos cenários, copos sujos, nódoas, as coisas comuns de um quotidiano feito de esperas ou impulsos disfarçadamente primitivos. Posso ver, em vez do papel molhado, uma superfície de mármore, lisa e larga, um azul infiltrando-se liquidamente no espaço de súbito cheio de claridades, mas algo em mim destrava o aviso das horas, um anoitecer vermelho e roxo que oscila na orla da retina, que se converte nos reflexos crepusculares ainda suspenso dos vidros.
Rocha de Sousa in «Angola 61»

                     
Há sempre um outro lado da história que fica no verso, que ninguém pode ler sem se deslocar nos degraus do espaço e do tempo. E como é difícil contornar esse aparentemente leve pormenor, direi antes, o pormaior de simplesmente virar a página entre as mãos.

Cada um de nós vê perto de si o que quer ver, na página esplendorosamente branca aquele levíssimo ponto negro a manchar todo o cenário, um cão negro correndo no campo de neve, na estrada limpa e larga um cadáver qualquer. E os corvos cumprindo um primitivo impulso cívico.

Há uma tendência natural para o equilíbrio, cada um complementando o outro, limando arestas, adoçando o presente intolerável com a intensidade das cores, o mar pintando tudo de azul, o crepúsculo presenteando uma tela de espanto. Quando o corpo se rende à beleza palpável do presente que o rodeia, quando numa curva da cidade emerge de repente um canteiro de flores, entre massa verde umas pinceladas de amarelo forte raiadas de castanho, talvez malmequeres, olhando para nós, o espírito esquece por momentos todos os males, as preocupações do mundo inquieto que vivemos.

Logo depois o sonho perdido do retorno quebra o corpo de cansaço, a espera do esplendor das rosas dilui-se no céu sem nuvens, os dias sucedendo aos dias, o tempo morno aquietando tudo, aplacando a ânsia do ver, do sentir, as mãos quietas sobre o regaço.

2 comentários:

Anónimo disse...

A semelhança na diferença, um texto
retirado de uma experiência de guer-
ra onde o ver quase anuncia o que po-
de vir a seguir, e este deslizamento num quotidiano com flores onde tam-
bém se aprende a quebra do corpo pe-
lo retorno, todos os retornos, mesmo
quando as mãos ficam quietas sobre o
regaço.
Rocha de Sousa

Manuel Veiga disse...

no corpo magoado dos dias, o bálsamo das coisas belas...

beijo