quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Esperança


Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.

      A quem deuses concedem
      Nada, tem liberdade.
Ricardo Reis



Escutem, dizem os deuses. Aqueles deuses que Camões colocou ao nosso lado a soprar os ventos a favor das naus, a aplacar a consciência dos reis do Olimpo e os reis do Oriente, a conduzir os homens para recantos de prazer naquele empreendimento maior que nos encheu de glória, nos trouxe a riqueza, mas afundou nos mares impérvios a nossa força de alma.
 
Escutem, eles dizem. Mas como escutar se o martelo hidráulico fala mais alto, destrói o tecido já contaminado dos séculos de cansaço, levanta a poeira que sobe e rodopia e se entranha em cada estria, em cada ruga, destrói a visão e corta a respiração do corpo exausto. Como escutar se o ruído é tão intenso, se os deuses não se distinguem, como adivinhar os avatares de Zeus na noite sem lua que só as estrelas espreitam no seu piscar calado de testemunha distante, sem voz, sem presença corpórea para prestar juramento nos tribunais dos homens. Como provar a inocência se a transgressão deixou marcas, escreveu em pedra a vergonha que os dicionários deixaram de grafar, se o pecado se esconde nas vestes dos sacerdotes dos media, já não os que conduzem as almas mas os que violam os corpos e as mentes com o poder que a avidez e a ignorância fazem saltar para as primeiras páginas dos nossos dias desumanos.

Bem hajam os que acreditam, bem hajam os que lutam ainda pela verticalidade, com as defesas possíveis, sem outra arma para além da palavra, o livro de Eli grafado em Braille, gravado também na memória, para memória dos tempos, mesmo depois da catástrofe.


2 comentários:

Manuel Veiga disse...

bela tua Palavra "profética"...
bem hajas!...

admirável. lembrando-(me) o Padre António Vieira na beleza do texto

beijo

Rocha de Sousa disse...

Eu gosto de alguns daqueles deuses do Olimpo, orgíacos e bons,por vezes
meninos em liberdade, mortais muito
ao longe.Os de hoje não,dão e tiram, é preciso esquecê-los e ouvir outras vozes, murmúrios de quem pensa a escrita com o coração.