quarta-feira, julho 20, 2011

Desassossego



 Senti o gosto da mortalidade na minha boca e nesse momento compreendi que não ia viver para sempre. Demoramos muito tempo a aprender isso, mas quando finalmente aprendemos, tudo muda dentro de nós, um tipo nunca mais volta a ser o mesmo. Eu tinha dezassete anos e, de uma forma absolutamente inopinada, compreendi – sem qualquer espécie de dúvida – que a minha vida era só minha, que a minha vida me pertencia a mim e a mais ninguém.
«É de liberdade que estou a falar, Fogg. De liberdade. Um sentimento de desespero que se torna tão imenso, tão esmagador, tão catastrófico, que uma pessoa só tem uma alternativa – ser libertada por ele. É a única hipótese. Enfim, claro que há outra, que é um tipo enfiar-se num canto e morrer.»
  
Paul Auster in «Palácio da Lua»

 
Outrora era uma palavra bonita, agora já não se usa. Outrora éramos jovens de corpo e a alma entontecia sem pouso num alvoroço que nem se dava conta de existir. Agora a alma quer ser jovem mas o corpo afunda-se em mediocridades que não queremos aceitar, agora que a alma se rege ainda pelas noções de outrora, com mais perícia nos sentidos, mais ponderação, mais controle das sensações quando elas invadem os espaços em que não cabem.

O outrora não existe. Paira quieto no coração de alguns, daqueles que têm passado, daqueles para quem o passado é a raiz que não negam, daqueles para quem o passado é o princípio da construção de nós. Mas são cada vez mais poucos.

Eu penso que os novos – e os velhos – têm medo da franqueza da sua origem. Meu pai tinha apenas a quarta classe. Meu pai era comerciante e filho de lavradores, como consta na sua certidão narrativa. Meu pai era respeitado. Alguns pais de colegas meus eram médicos, ou advogados, ou engenheiros e por isso se achavam superiores. E alguns não eram respeitados. Razões haveria para um e outro caso, outrora. Que agora já não contam essas razões, eu acho. Dizia-me então meu pai que no tempo do Império Romano, o deus Mercúrio (e Hermes, já antes, na Grécia), era o protector dos viajantes, dos mercadores, dos comerciantes e dos ladrões. Mas também o deus da eloquência e da inteligência, ele era o mensageiro dos deuses. Muito ágil, era representado com asas, jovem e esbelto. À minha interrogação muda explicava que os comerciantes eram normalmente associados aos ladrões e daí o mesmo deus para os proteger.

Mas hoje não há viajantes nem mercadores nem comerciantes nem ladrões, há empresários e banqueiros. E é claro que nem tudo o que parece, é. Outrora já era assim, agora é muito mais assim, ou pior. O que parece, não é mesmo. Também eu não sou o que pareço. Ou sou?

4 comentários:

alfacinha disse...

cativante para ler
cumprimentos

Justine disse...

A subversão dos valores é sempre algo perturbante. E roubando o título ao filme, "este país/mundo não é para velhos"...

Manuel Veiga disse...

já nãp há viajantes - apenas a "usura"...

beijo e beijo
gostei muito.

Rocha de Sousa disse...

Outrora, a luz e a brisa, o corpo naturalmente vivo. Não há passado na infância, mas há na juventude e
duranta aquela maturidade em que os
nossos pais (o passado) vomeçam a ter sentido e a dar sentido aos nossos desejos, projectos,retornos:
foi isso que levou aquele persona-
gem da CASA REVISITADA a dizer em plena madrugada: «Cheguei ontem e decidi ficar». Esta escolha vem do passado. O passado ajuda e desaju-
da, existe e apaga-se. É memória mas pode também ser projecto.
Os deuses romanos ajudavam em mui-
ta coisa: porque ao reconhecermos as suas funções «departementais» inventávamos as nossas.
O que parece pode ser ou não ser.A Jawaa á mais do que parece.