domingo, fevereiro 13, 2011

Desligar

Pedra a pedra construo o meu poema
e é nele que dos dias me defendo
Nada sei de emoções manipulo morfemas
e nas cidades sinto a solidão dos campos
Humano mesmo se demasiado humano
não peço ou posso privilégios de poetas
e desconheço a carne cerebral de que careço nos
sonhos que me semeiam as semanas
cingidas de cidades sossegadas
onde só o silêncio é soberano

Ruy Belo in «País Possível»



A Primavera espreguiça-se já pelas manhãs soalhentas, chuvaradas lavando os telhados, a acender mais o verde das folhas, semeando de brancura os campos, os dias de luz mais comprida.

Às vezes é preciso cerrar as portas do armário onde o mundo espreita e insiste em mostrar a face mais dura, a mais amarga, a mais insana, a mais inútil quantas vezes. Os telejornais das oito perderam a noção do que é, ou deve ser um noticiário. Espalham-se por longuíssimos minutos numa abertura sangrenta, violenta sempre, em dias seguidos repetem as mesmíssimas imagens recolhidas,  os mesmos comentários dos locutores, alguns num entusiasmo que chega a ser mórbido.

Queremos saber, sim, o que se passa no mundo, queremos saber a evolução do que vai pelo Egipto, pelos países árabes, mas eu, pessoalmente, não quero esperar uma longa meia hora até ouvir falar do país que é meu, ainda que dele apenas ouça os casos de faca e alguidar, as palavras pouco edificantes trocadas entre os seus mais altos representantes, raramente exaltar o que também vai surgindo aqui e além, pela Cultura, a Ciência, as Artes.

Resta a palavra escrita, onde por vezes surgem ideias que me surpreendem pela positiva. Fechar por um dia as portas ao exterior, não sair de casa. Imaginar que vivemos num país rico, onde não há necessidade de mendigar dinheiro pelo mundo (pedir fiado, dizia-se nas mercearias dos tempos antigos, pôr no prego o país, mais duramente), onde há condições básicas de saúde, onde se pratica uma justiça em que os corruptos e os pedófilos sejam mesmo punidos, onde a educação e o estado social não permita que os idosos permaneçam sem vida nem sepultura durante quase uma década, onde há emprego para todos, onde não há sopa dos pobres, onde as crianças vivem em segurança, respeitam os mais velhos e são respeitadas. Um país em que se saiba pensar e aceite organizar-se com vista a um Futuro para todos.

É fácil ser feliz por um dia, embrulhar o pensamento na magnólia que floresce, nas camélias, nos pássaros que pedem comida, nos jogos do PPP. E no resto.
É preciso, para respirar.

3 comentários:

Manuel Veiga disse...

como e bom ler-te. e saber que para além dos telejornais há pessoas que respiram!...

beijo

Justine disse...

O teu grito de angústia é o meu grito de angústia.As tuas exigências são as minhas exigências e é possível pô-las em prática - a pouco e pouco, à medida que a força for crescendo.
Mas, como dizes no teu excelente texto, às vezes é preciso fazer uma pausa e tentar ser feliz por um dia! Para não sufocar...
Abraço

Rocha de Sousa disse...

Parecia que o remédio estava encon-
trado pela globalização e pelo eu- ro, Magreb e gritos inexplicavel-
mente limpos: sem bandeiras espazi-
nhadas ou ardidas. Parecia que a crise era uma chuvada passageira, mas Deus não dorme, a sua omnis- ciència é a sia insónia. Corro ao
longo do passeio porque perdi a carteira no café e já não consegui
encontrar nada. Mal sabe o ladrão que não passará de hoje.
E eu venho devagar esperar o ama-nhecer e o ar que preciso para res-
pirar, antes de Kadafi arrasar Tri-
poli.