Olhava-me a desafiar-me, pensa, discute comigo, anda lá, a sua voz era suave e os seus olhos insolentes, diz-me são uns ateus, ardentes, contraria-me, anda lá, inteligentes, e tu, pensa, ouvi-la assustado e admirado: aquilo existia, Zavalita. Pensa: foi nessa altura que me apaixonei?
Mario Vargas Llosa in «Conversa n’A Catedral»
Não tenho a certeza de quando acordei para a consciência do amor à terra em que nasci. Quando procuro, quando olho para trás, parece-me que fui acordando aos poucos, como o dia esquentava nas manhãs frias de cacimbo atrás das perdizes, as nuvens de nevoeiro pousadas ainda nas faldas da serra do Andacá, depois o sol a abrir, a aquecer, a incendiar tudo.
Deve ter começado quando me empolgava com Eurico, nos morros do Calpe a responder ao grito Allah hu Acbar! de Tárique: «Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é chegado, eu morrerei contigo». Terá sido quando senti o meu chão tremer, a minha terra agredida no despertar da adolescência, terá sido quando pela primeira vez deixei que o oceano se interpusesse entre nós, quando aceitei mais tarde viver longe dela, e depois, um depois que não devera ter existido, quando a abandonei.
A paixão viveu dentro de mim escondida por muito tempo, por muitos anos de pudor. Foi sedimentando e sarando feridas abertas por lá, o tempo não é o nosso maior inimigo – discordo de ti, meu Camus! Agora, esse tempo que me cobriu de rugas e de cãs, trouxe serenidade às duas, à terra e a mim. A guerra insana parou, ficaram as lutas pequenas que mantêm, que dão sentido à vida.
Por vezes é bom olhar para trás, a saudade faz tudo tão bonito, tão doce, tão macio e suave ao toque! Pode escolher-se os caminhos, evitar os pedregulhos, as rochas que rasgaram a carne, esquecido já o sabor do sangue. E esperar que se cumpram os ritos.
4 comentários:
Não me canso de ler estes bocados de vida, partes do ser: a terra que
largamos para cumprir a vida e mais tarde a terra a que somos arranca-nos a fogo. Mas a sua ferida vai no seu coração, um dia.
Camus tinha mesmo razão - o tempo que ele nomeia é justamente esse tempo que esconde paixões, que se
mitiga pela saudade, que nos retoma
e nos embranquece, e nos põe rugas
na cara e nos faz desejar a impos-sível recuperação de mais projectos
e mais imagens e mais sonho. O tem-
po que ele lamenta é o que não nos
deixa margem para sermos aquilo que
ainda permanece em nós e já não podemos legar a ninguém.
Que belíssima maneira de dizer reconciliação e serenidade. Comovente!
O tempo é o nosso maior inimigo quando vivemos numa guerra insana.
Cronos devora até nossas lembranças, e quando olharmos para trás é preciso tempo.
Eu tenho muita saudade do meu tempo de criança.
Dias atrás estava na orla de Ilhéus prozando com um amigo, quando passou uma senhora dirigindo um carro. Aquela senhora parecia por demais contigo.
Logo me bateu uma saudade do tempo que eu tinha tempo de apreciar tua literatura.
Amiga Jawaa o tempo tem nos afastado ou melhor a falta dele, mas continuo com o mesmo carinha e admiração de antes. Não esqueça isso.
Abraços afetuoso \o/
Enviar um comentário