Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
– Dói-te alguma coisa?
– Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
– O que fazes quando te assaltam essas dores?
– O que melhor sei fazer, excelência.
– E o que é?
– É sonhar.
Mia Couto
Quando não se tem corpo para acompanhar o desejo não cumprido, ou porque a idade ainda não baste ou porque o corpo já não suporte, as dores cumprem-se com o ritual que cada um define à sua medida. O pássaro que existe dentro de nós, se não há grades que o sustenham, abre as asas e voa, luta pela vida e sobrevivência; se a porta se mantém fechada, queda-se embalado no poleiro que balança no ar que respira, ciente da água e alimento sempre ao alcance do bico.
E então os mais loucos fantasiam em trinados por entre as grades, que ecoam nas paredes lisas e duras dos prédios, perambulam nos ventos, soam perdidos enfim na folhagem, nas ramarias onde pertencem. Se o canto se repete e é sentido, se a força permanece, talvez os canaviais recolham a melodia e a façam soltar um dia na flauta dos pastores.
Escrever – sonhar – é assim o que resta quando as grades são mais fortes, quando a portinhola não roda, quando é mais precioso o brilho das penas do que o chamamento dos ares que nos despenteiam e fazem a vida girar de assombro.
6 comentários:
Escrever - sonhar - viver!!
Abraços:)))
Excelente post!!! Excelente blog...
PArabéns...
Acesse o meu... http://mailsonfurtado.blogspot.com
Como é indispensável sonhar!!!!
escrever é ainda (e sempre) perseguir o sonho.
e no voo colher voos. outros...
na proporção inversa (dir-se-ia) peso das asas...
belíssimo e sabio texto,
beijo
É verdade o que diz. Que faria alguém a quem uma única asa fin-
gisse o voo de outrora?
A escrita visualiza o voo,
a liberdade que nos é cara,
deixa sossegar a asa
e grita uma voz cravada no
papel
Leve como o voo dos pássaros, este teu texto. Lindo!
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