“A classe eclesiástica não significa a realização de uma crença; é ainda uma multidão de desocupados que querem viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira, como se compreendia outrora, é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres, e das casas arruinadas; é a ocupação natural das mediocridades; é o usufruto da burguesia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade”.
Eça de Queirós
Ler uma página intensa de escrita é como sentir-se a escalar um muro alto, cavalgar um obstáculo, galgar uma muralha antiga e depois seguir as palavras despenhando-se, nem sempre ordenadas no espaço, no tempo, mas sempre precipitando-se com fragor, troando, rolando umas atrás das outras, algumas pisando, magoando, matando, ou simplesmente correndo mais leves, amortecidas pela grama, suaves compondo um desenho novo.
Tudo parece actual porque a história se repete e os homens não aprendem. Falam da liberdade mas não se libertam das amarras com medo de afrontar o oceano, continuam Velhos do Restelo, quiçá sonhando as navegações dos outros, mas incapazes de darem as mãos e entrarem juntos no barco. E os poucos que partem, já não querem regressar, receosos das areias movediças que ladeiam os rios da sua pátria.
Dos que deixaram longe a força da mocidade caminhando frontal e temerária, segura dos seus passos, palmilhando a areia sem temor das dunas, contornando as árvores na floresta insegura, ou civilizadamente cruzando os ares e os mares ou os caminhos de asfalto, pisando, rasgando, conspurcando, poluindo, a sabedoria da idade adulta moderou os excessos, cientes já da insegurança subjacente em cada passo, cada encruzilhada, cientes das dificuldades na construção das pontes, cientes da impossibilidade do regresso à casa paterna.
Já deles os cabelos perdem a cor, a suavidade do toque, ou simplesmente deixam de estar. A pele escurece juncada de manchas, de estrias, as veias crescendo através dela, os ossos alterando o molde perfeito inicial. Nem há como fugir a isto, salvo adoçar o tom e o gesto, encher-se de cor e de música, manter o brilho do olhar, carregar-se do espanto da infância. Resta-lhes a hora final e, à boca da urna, deixar então o voto expresso.
Matar só porque (e quando) se tem fome.
5 comentários:
..."porque a história se repete" -a segunda vez como comédia , se não mesmo tragédia...
admirável texto. o teu ...
beijos
Uma bela análise do passar do tempo e da proximidade da morte. Muita dignidade nas suas palavras e na velhice que sempre vem, e nos chicoteia o corpo e a alma.
O negócio é lutar pra manter o olhar genuíno e os sonhos de pé.
Beijo.
"...quiçá sonhando as navegações dos outros, mas incapazes de darem as mãos e entrarem juntos no barco."
de vez enquanto, até, se ver mãos dadas; mas há ironia nos corações.
Sobre as palavras de Eça, entendo que quanto mais forte for o Estado maior dependência teremos.
Abraços com afeto singelo.
...palavras troando, rolando,
memória colossal caindo no presente,a nossos pés, sob a nossa consciência, nu alarde de semelhanças com esta nossa magoada hora.
A história não se repete, mas os homens sim, refazem-na sempre e cada vez mais deformada.
Os emigrantes também podem ser
desertores: cospem o tijolo português e vão carregar em França a lama que o diano amassou.
Na escola andam preocupados com
a educação sexual, mas nunca
ensinam os jovens que formas
de associativismo lhes poderia
minorar a escravatura moderna.
O desespero que os poderosos geram
à sua volta só se combate pela
desalienação, mesmo que o futebol
forneça a catarse e a Igreja as
liturgias do obscurantismo.
O tiro mortal daquele cacique
primata, numa mesa de voto, ainda
se reinventa nos meus ouvidos.
Era só raiva, vontade de submeter os outros, não era desespero nem
fome.
Parabéns professora, por seu dia, por ser professora.
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