…Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.
Rui Knopfli
Gosto de ver chegar o sol depois
da chuva que deixa tudo lavado.
Sorriem as gotas brilhando sobre
as pétalas, as folhas, a relva, mas falta-me o cheiro do calor da terra e o céu
também não é igual; sinto as nuvens mais leves, o horizonte sem linha.
Nesses breves instantes assola-me
a ideia de que preciso de voltar a encontrar o chão que deixei e vive comigo,
misturado nas ilusões que mantenho a dormir e nos sonhos que eternizo acordada.
Cresceram as silvas, as canas
encheram as margens do rio, mas a casa está de pé. Nas janelas ainda as
cortinas de renda antiga cobrindo os parapeitos largos, na janela do meu quarto
a pedra de mármore rachada onde pousava aquele vaso de avencas sempre viçosas,
crescendo constantemente em cabecinhas enroladas, como que envergonhadas de
tanto viço.
Quem sabe os livros ainda nas
estantes do quarto dos pais que contornavam a secretária grande para formar o
escritório. As portadas das janelas pintadas de verde musgo, as portas altas,
com bandeiras de vidro por cima, o tecto de tábuas de tom dourado todas
marcadas dos nós da madeira de pinho, a minha cama de ferro a fingir-se coberta
de verdete, as maçanetas e as barras a pedirem solarine, o mosquiteiro branco…
«Acordo
e vejo que nem um breve engano posso ter…»
2 comentários:
Um poema bem ao seu gosto, parece
escrito por si, não conheço «este»
autor.
Mas o da prosa, da chuva que lava
tudo e da casa e dos seus lugares
num tempo sem data, isso sim, é bem
seu. E muito me toca porque já fiz
esse exercício, com palavras e em filme, na base da minha casa de Silves. Vá lavrando a terra de sím-
bolos, nós queremos beber o sumo da
fruta imaginária emergindo assim.
Adorei o texto. Tão delicada a memória! E magoada a expressão do fim, tão do agrado de outras memórias também... ;-)
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