O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
- Antónia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
- Você sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?
A moça se lembrava:
- A gente fica olhando…
A meninice brincou nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
- Antónia, você parece uma lagarta listada.
Manuel Bandeira
Um corte na diacronia do tempo do crescimento que os grandes poetas sabem registar com precisão e singeleza.
Há as lagartas listadas e as lisas, aquelas todas verdes que se confundem com os vegetais que comem incansavelmente, e também são castiças. Mas as lagartas listadas lembram-me os bichos-da-seda, nem as identifico como simples lagartas. Começam pequeníssimas e negras desaparecendo atrás das folhas de amoreira, e de repente surgem fascinantes, coleantes, riscadas de negro. Depois é esperar que desatem a esconder-se entre os fios preciosos com que constroem os seus esconderijos até despontarem em insecto perfeito, nem sempre bonito, mas sempre fascinante como o culminar de um processo – estranho, no mínimo.
Tudo isto para voltar ao tema do meu post anterior. Eu, que fui professora (de Português também, imagine-se!), sinto-me descompensada, quando vejo a geração - que me passou pelas mãos por largas décadas - gerar filhos quase analfabetos e seguir em frente mergulhada
O que me leva a dar o benefício da dúvida às Novas Oportunidades é um pouco o que me faz concordar com o novo Acordo Ortográfico. Para grandes males, grandes remédios. Parar é morrer ,e o mundo lusófono tem de unir-se para fazer frente ao mundo anglófono e hispânico, principalmente, sob pena de soçobrar como vem acontecendo já à francofonia, onde bebemos tanto da nossa cultura literária (e não só). As Novas Oportunidades não ensinam a ler ou a escrever, mas não parece que seja importante - como deixou de ser importante decorar a tabuada ou qualquer poema de Augusto Gil ou João de Deus. Nem tarda que as crianças deixem de usar a caneta – está aí o Magalhães! – pois só lhes é pedido que identifiquem a imagem da letra e carreguem numa tecla. Mais breve ainda, como os telemóveis já o fazem, carregando na primeira letra, o computador vai adivinhando, propõe, a palavra que se quer escrever. Resta-me esperar que as Novas Oportunidades despertem cada um para a necessidade de aprender, de se esforçar, de se cultivar, de usar as novas tecnologias para melhorar a sua vida e o seu bem-estar. Que alerte para a enorme responsabilidade de participar na res publica.
A Revolução dos Cravos falhou numa coisa importantíssima: quis acabar com os estratos sociais unificando a Educação. Só conseguiu afundar ainda mais o fosso que separa a nova elite dos «outros». Cumpre-nos agora ficar do lado desses «outros» e mostrar-lhes as pontes, as saídas possíveis. Para que não morram crisálidas e possam voar borboletas.
Fernando Pessoa, logo a seguir a dizer aquela frase tão badalada que me escuso aqui de repetir, acrescentou: «Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»
Eu vou sentir Pessoa até ao fim dos meus dias.
4 comentários:
Um post excelente!
Beijos.
Que panorama catastrófico, Jawaa, mas o pior é que te dou razão. Arrepiante ouvir os jovens a falar, assustador ler como escrevem. Como será daqui a 30, 40 anos??? Se calhar ninguém se importa, a não ser românticas casmurras como nós...
Bem podias publicar este texto no blogue da Nova Águia... Seria oportuno.
Não te preocupes, aquilo está mais calmo com as mudanças, apesar de ainda estarem por lá uns cromos de língua afiada...
Beijinho.
«Leite Derramado» é um dos melhores
depoimentos que tenho lido sobre as
letras e língua portuguesa. As citações iniciais escorrem por nós como uma daquelas verdades que logo nos abrem os braços, em jeito de asas, ou as listas do léxico visual que trabalha o nosso imaginário.
Cresci para a língua portuguesa desde muito cedo e arrastei-a comigo, com a pintura,como um bicho amigo, até hoje, sem ter nenhuma das credenciais da eru-
dição em línguas. «Escrevi, amei e até cri», a memória de Fernando Pessoa, devassada mas autêntica. A arte que escolher a cada momento inclui sempre a nossa língua - o ser com ela.
Concordo também com a implementação
do acordo ortográfico, mas magoa-me
que tenha sido mal negociado, a precisar de um roteiro de exce-
pções. Por muitas cedências feitas
aos brasileiros, entre eles a lín-
gua falada pelo povo é cada vez mais «outra língua». De resto, o nosso desnorte, leva-nos, em nome da modernidade a cometer erros contra a pessoa e o seu património mais profundo. É preciso gerir a salvação da mão humana, contra a massificação tecnológica e contra a surdez, já agora.
O modo de unificar o ensino, fe-
chando as escolas médias do técni-
co, foi outro desastre: e esse vem do Veiga Simão. Surgiram os poli- técnicos para corrigor, por cima, os erros. Mas logo todos quiseram ter também a licenciatura. Hoje não se sabe quem é quem, nem qual o grau da sua iliteracia sob os desígnios doutorais. Ser doutor é a pior das nossas mitologias.
Pessoa, enfim. Mil vezes bem cita-
do. E como ele sabia cuspir nos doutores!
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