O périplo de uma vida à procura da palavra. Viemos ao mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim. Ou encontrei apenas a do silêncio. Ou a palavra enigmática que a mãe do narrador desse meu romance Para Sempre lhe diz ao ouvido à hora da morte e ele tenta entender através da vida inteira."
Vergílio Ferreira
Conheci-a num dia em que ela chegava com o irmão da Escola Primária 31, para além da linha de Caminho de Ferro, na Rua do Comércio.
Fiquei fascinada por aqueles cabelos encaracolados muito loiros brilhando ao sol da tarde e uns olhos azuis, azuis e transparentes como água. Era diferente das meninas com que brincava, todas mais velhas, filhas dos amigos dos meus pais, no tempo em que três anos de diferença de idade era mesmo muito importante (ela apenas mais um). Parece que eu usava um vestido claro com folhos e uns desenhos de patinhos, o que a memória dela registou. A minha só gravou aqueles caracóis quase brancos e o céu dos olhos dela.
Ficámos amigas para a vida. Nunca estudámos no mesmo colégio, ela esteve durante os anos de liceu internada nas Doroteias, em Sá da Bandeira, fomos desde cedo unidas e separadas por cidades e continentes. Temperámos a nossa amizade nas tardes de domingo à hora da matiné, no velho cinema Ruacaná, onde havia três fiadas de cadeiras pintadas a vermelho na frente e onde se sentavam as crianças sem lugares marcados. Juntas ouvimos aí declamar João Villaret, desembrulhando-se no final de uma enorme bandeira portuguesa. Assistimos juntas à inauguração da nova sala de cinema, mais luxuosa, com balcão e camarotes e cadeiras estufadas, com o filme Frei Luís de Sousa, de que ainda hoje recordamos a cena final dos pais deitados no chão da igreja, recebendo os votos e Maria (Dulce) gritando e desmaiando por fim nos braços do seu fiel criado Telmo.
Tínhamos por essa altura quase dez anos e o tempo corria ainda devagar, sempre na espera do seu regresso nas férias.
Juntámos os nossos pais para uma amizade que perdurou pelas décadas que lhes restaram de vida.
O irmão dela é o irmão que já não tenho, o seu marido, o amigo de infância.
Os nossos filhos cresceram juntos e os netos dela são um pouco meus.
Quando os espaços nos separam, as velhas e novas tecnologias nos mantêm unidas.
Vamos comemorando as décadas «de amizade» com encontros e lembranças.
Até ao fim.
5 comentários:
Ler um texto assim, memória, bem
estar de uma amizade «para sempre»,
é como se nos fosse oferecida a
brisa da mansidão e este sentimento fraternal nos limpasse de todas as
impurezas, até ao fim.
O que leva o caminho das memórias partilhadas - tão belo - um doce riacho de infância. Que se conserve!
Bjinho
(achei piada ao ver que temos uma mania comum: ver devagar o que nos agrada. Não deixar frases feitas mas "fazê-las" - mesmo sem saber se alguma vez as repetimos! Fico feliz Jawaa por te ir conhecendo, eu que ao ver a tua mão a escrever e as cores da fotografia, sempre te pensei vinda da India, Goa... sei lá! coisas que a gente pensa de repente. Mais um abracinho meu.)
Amizades assim já não é fácil fazer nem encontrar, Fico feliz por saber que tambem faço parte deste texto maravilhoso.
Com velhas amizades, é possível compartilhar os aspectos mais íntimos e mais importantes, na certeza de que sua beleza e valor serão reconhecidos e apreciados.
Com velhas amizades, a distância não tem significado ou poder. Há uma ponte feita de amor e lembranças, alegrias e tristezas que une velhas amizades e as mantém próximas.
Para sempre. Linda a vossa Amizade! Beijos
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