Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.
Eugénio de Andrade
Um dia, crescendo cá dentro a vontade de olhar sozinha o espaço em volta, entrei na floresta grande sem medo, achando em cada árvore uma mão protectora. Comecei devagar, olhando para cada lado do chão e fui caminhando, caminhando e crescendo, cada vez mais erguendo a cabeça e vendo mais largo. Bem que olhei para cima, mas a folhagem tocava o céu e filtrava apenas a luz suficiente para não ser totalmente escuro.
Mais adiante, encontrei uma espécie de clareira onde o sol a pique incidia sobre uma pedra negra e ovalada, que surgia à face da terra como uma, várias corcovas seguidas, uma delas enorme. Mas sempre pouco acima do chão térreo onde cresciam flores pequeninas. Sentei-me na pedra maior que aflorava e olhei cada uma, assombrada pelas cores variegadas, exotismo das corolas, textura das pétalas e, principalmente, como de igual formosura elas cresciam da rocha, sem outro chão. Segui adiante para fugir à ardência dos raios e fui pensando que aquela dura massa escura deveria ter grandes segredos a contar, se pudesse sair dessa posição corcunda, de face voltada para baixo.
Outra vez sob o arvoredo, perdi a noção das horas que se escoaram rápidas, nem uma cor sobressaindo do restolho castanho que pisava. Em determinada altura o chão já não se via: cresciam ervas e lianas desciam dos ramos altos. E então olhei de novo para cima, onde a folhagem murmurava, e ouvi o canto dos pássaros e o grito dos bichos. Se encontrasse um ramo baixo, tentaria chegar-me àquele mundo de sons que desconhecia. Não era fácil, a noite coava já as estrelas e de repente uma claridade nova deu vida a um espaço aberto, onde miríades de brilhos tremeluziam e um som cantante de água a despenhar-se ecoou por entre pios e rugidos e coaxar de rãs. Corri quanto pude e vi o segredo das rochas enormes que cresciam altaneiras desvendando o rosto bonito, águas limpíssimas saltando de branco e de som, correndo e dando vida e brilho à noite sem luz.
Tudo isto acontece quando os Homens dormem.
6 comentários:
E acontece quando os Homens sonham! Uma beleza de post! Muitos beijos.
Um poema em prosa, a contar-nos dos sonhos e dos mistérios da natureza, os que não se deixam desvendar pelo homem.
( o poema exemplar de Eugénio, a estender-te a mão e a voz...)
Esses, os mistérios que só desvendamos pelo sonho. Os que verdadeiramente importam. **
muito bom texto. Muito bom teu blog, gostei daqui,
Maurizio
Enquanto mulheres sonham e poetas pensam.
Acolherás o repouso, lá longe, porque repousarás numa das tuas rochas conhecidas. A luz vem ao teu encontro.
Bjinho, boas viagens!
Na idade longínqua, a experiência
enfrenta a grande ralidade e marca
um primeiro sonho.
Mais tarde, o contacto com o desco-
nhecido dilata o sentido do imaginário e do maravilhoso.
Por fim (ou no verdadeiro começo)
o deslumbramento (na maturidade) através dos sonhos.
A cascata da vida brilha sobre os
verdes envolventes da flora.
Gostei. A última frase parece uma pedra pronta a acordar-nos.
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