domingo, maio 03, 2009

Repensar


Temos todos duas vidas:

A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,

E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;

A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

Que é a prática, a útil,

Aquela em que acaba por nos meter num caixão.


Na outra não há caixões, nem mortes,

Há só ilustrações de infância:

Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;

Grandes páginas de cores, para recordar mais tarde.

Na outra somos nós.

Na outra vivemos;

Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;

Neste momento, pela náusea, vivo na outra…

Álvaro de Campos





Nada é para sempre.


Nem a vida que vivemos, nem os sonhos que sonhamos, nem a tristeza em que afundamos quando implodem os muros que nos sustentam. Depois do estrondo, da poeira que nos cobre, a chuva cai de manso e escorre deixando sulcos, rugas, estrias, limpa a cor dos cabelos e humedece o chão. Fertiliza.


Então os contentamentos crescem de manso por entre as pedras e deixam um rasto ténue de cor, como um sorriso, É o milagre a que damos o nome de natureza, onde o verde desponta de um grão de pó, a borboleta emerge esplendorosa de um ovo seco, onde o espectro solar acende no fundo da tempestade.


Mergulhar na natureza, nas raízes do tempo, na noite, é lenitivo para as inquietações do espírito, também quando as dores são reais porque se reflectem no corpo já gasto. E quando não há forma de fazer sentir aos outros que os grandes problemas que afectam o mundo e cada um em particular, não é nada do que o mundo global noticia sobre a grande finança que leva os países à falência.


É simplesmente saber dividir o que já temos e chega para todos.


Para todos sermos um pouco mais felizes.


5 comentários:

Rocha de Sousa disse...

«Nada é para sempre». Lapidar, mi-
nha cara amiga,mas o seu belo tex-
to não rependa tanto quanto devia:
é quase uma patética manobra da mente no sentido de que a razão, emocionalmente agitada, envie men-
sagens de esperança para a cons-
ciência:mergulhar na Natureza e nas
raizes do tempo pode servir de le-
nitivo para muitas coisas da onto-
lógica falência. Porue nada é pa-
ra sempre. Dividir é cada vez menos
possível e sermos um pouco mais fe-
lizes é utopia. Talvez possamos re-
dzir isso aos contamentos pueris numa manhã bonita, depois de uma noite bem passada. Raridades.
Rocha d Sousa

Manuel Veiga disse...

saber dividir. o que chega para todos.

grato pela partilha. das tuas belíssimas palavras,

beijos

vida de vidro disse...

Sábio, o teu texto. Como estamos a precisar dessa vocação da felicidade! **

bettips disse...

Esse mundo global não quer nem sabe.
Que tantos de nós fazem diferente e dividem amor pelos outros. Palavras ou gestos.
(o que impressiona de verdadeiro, esse poema...)
Bjinho

pianistaboxeador21 disse...

Belíssima epígrafe e o texto emociona e faz refletir, como sempre aliás.

Acho que nossa única obrigação verdadeira nesse mundo é slavar os nossos sonhos.

Beijos