E me comovesse o amor como me comove
a morte dos que amei, eu viveria feliz. Observo
a figueira, a sombra dos muros, o jasmineiro,
em que ficou gravada a tua mão e deixo o dia
caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,
os que se perdem nas ruas, os que abandonam
a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer
o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém
comove. Vejo-te regressar do deserto, atravessar
os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.
Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças. Dá-me apenas
o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.
Há demasiados escritores. Demasiados livros publicados. Demasiadas pessoas a dizerem coisas em nome de outros. Demasiada informação e desinformação. Demasiadas árvores abatidas para o papel circular, demasiadas cópias, muita escrita além do necessário.
Num tempo a que procuro adaptar-me ainda a tanta coisa nova, há a fabulosa ferramenta da Web que diz tudo acerca de tudo, de muitas maneiras, que vai tendo cada vez mais bibliotecas inteiras ao dispor de todos, em todas as línguas, onde cada um de nós pode acrescentar sempre um ponto, abrir um pensamento. Eu nunca diria algo de novo, algo mais que já outros não tivessem dito, pensado, escrito.
Então para quê publicar um livro?
É uma questão que coloco a mim própria há muito, muito tempo – não se tem um filho só para nosso prazer, terá de ser para o prazer de o vermos ter prazer por o termos feito nascer. Ainda não encontrei resposta nem decerto a encontrarei porque é uma questão que ultrapassa a racionalidade como tantas outras do foro mais íntimo que só alguns – mesmo só alguns – conseguem exprimir por palavras. Só um Camus consegue mergulhar-se em nós e sentirmos cá dentro a pureza, a ingenuidade, a incredulidade de um assassino, condenado à morte por um crime, por crimes que (não) cometeu. Sem dolo.
Falta-me o tal golpe de asa, a imaginação, a invenção, a ferida que dilacera a alma e rasga os silêncios que se calam porque afinal pertenço aos oito por cento da população do planeta que tem obrigação de sentir-se feliz.
E ninguém escreve um livro de verdade quando é feliz.
14 comentários:
E se falássemos de coisas divertidas?
Um beijinho da Tela.
Acho que não concordo contigo, Jawaa, mas se calhar não é possível estar a discutir aqui este assunto. Nem interessa.
Mas pode, creio eu, escrever-se um livro sendo-se feliz.Ou tendo momentos de felicidade, porque esta não é um estado. Porque razão a infelicidade há-de ser tema mais produtivo que o bem-estar?
Um dia destes podemos continuar...:))
Acho que não concordo contigo, Jawaa, mas se calhar não é possível estar a discutir aqui este assunto. Nem interessa.
Mas pode, creio eu, escrever-se um livro sendo-se feliz.Ou tendo momentos de felicidade, porque esta não é um estado. Porque razão a infelicidade há-de ser tema mais produtivo que o bem-estar?
Um dia destes podemos continuar...:))
Fiquei a pensar nesta ultima frase...
Beijo deste seu Pingo de sol em dia de chuva
E não escreve mesmo. Pq quem está feliz quer curtir a felicidade. Mas escrevemos pq queremos dizer o que já foi dito do nosso jeito, com o nosso olhar, nossa estética, ainda que falha, e nossas vivências. Escrevemos para pedir desculpas e para nos vingar, escrevemos porque somos vaidade e o mundo nos deve alguma coisa.
Só existem dois livros no ocidente. A bíblia e os Homeros, o resto é reescrita.
E o poema do vinícius é de tirar o fõlego.
Abração,
daniel
Na verdade, também eu muitas vezes penso que nada tenho a dizer que ainda não tenha sido dito. Então para quê publicar? E sinceramente também me parece que, quem é realmente feliz ou pelo menos não carrega consigo uma permanente inquietação, não escreve algo que nos revolva interiormente. **
concordo que poliferam as palavras. tantas vezes inúteis. e bem compreendo a tua perplexidade.
mas enquanto assim disseres, escrevendo, virei ler-te. com prazer...
beijos
Hoje mesmo pensei nisso, "há demasiados livros", ao entrar numa livraria aonde nunca tinha ido.
Depois pensei que há palavras que ficam caladas, palavras e frases e livros e livrarias que ficam à espera de ser encontrados. E que encontro, na perdição dos mundos!
Um abraço
Escreve-se um livro da mesma forma que nos entregamos a alguém porque
nos amamos. E essa osmose, que tem
instantes de prazer, não exactamen-
te de felicidade, avança sobre con-
tentamentos e descontentamentos, a perder com o tempo a alegria de uma
espécie de inocência inicial.Depois
as memórias acumulam-se e há muitas
que só relembramos no fundo de uma
angústia calada, entre outras que temos de reinventar, exprimir, tor-
nar visíveis. Eis uma das funções do livro, um bocado de nós e dos outros que podemos transportar na
algibeira. Isso é simultaneamente
empolgante e anunciação de vários temores.
Uma pessoa em estado, mesmo ilusó-
rio, de felicidade, como que se ir-
racionaliza, dá-se ao sol, não tem
a carga das experiências que nos leva à escrita. Ao contrário dos comentadores, acho que a Jawaa tem
razão. O decorrer da escrita pode ser mais ou menos leve. Se ela cor-
responde ao que sabemos querer di- zer, algo nos agita. Mas ao lidar- mos com a escrita, o nosso psiquis-
mo oscila numa relação de paradoxo.
Rocha de Sousa
Compreendo a tua dúvida, pois compreendo, mas parece-me que alguns, como tu, têm um modo de dizer muito próprio que poderá enriquecer o que eventualmente tenha sido já dito. E penso que não é obrigatório publicar livros, pois pode-se chegar ao outro sem ser através da livraria, e isso também importa.
É bem verdade que a Palavra escrita, no seu sentido mais degenerativo democratizou-se; valha a verdade que, pela História fora, tantas vezes isso aconteceu (também) à Palavra dita...
Mas sempre, na seara, nasceram ervas...
abraços!
E o que é que eu digo depois destes senhores que sabem tanto?
Olhe, Dona Jawaa, desculpe, mas hoje fico por aqui.
Um beijinho para a Senhora.
Uma questão que muita gente se deveria colocar: poupava-se no papel e diminuia-se o lixo nas livrarias.
Beijinhos.
P. S. Belo, o poema.
O BAR DO OSSIAN agradece o apoio. Em breve abriremos as portas.
Abraço lusitano!
Klatuu Niktos, Lord of Erewhon
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