«Alors elle découvrit un autre spectacle, l’autre versant du cessez le feu, la débâcle pied-noir. Les quartiers français sentaient l’abandon. Un grand nombre de villas étaient fermées, cernées par le silence. Quelques retardataires erraient encore, derniers fantômes d’un monde emporté par les dévastations de l’histoire. Leurs visages disaient leurs cauchemars. Leurs yeux paraissaient vouloir la mort comme une délivrance. La mort pour eux ou pour les autres, ceux sur les visages desquels ricanait la revanche. La mort pour tout ce qui leur était arraché de leur passé.»
Malika Mokeddem
O acto de ler é uma forma de ver.
E a escrita é tanto mais atraente quanto desnuda.
Ler é olhar pela janela a chuva caindo em fios grossos embaciando o ar, riscando os vidros, avivando as cores, lustrando as folhas, gotejando alegre nos beirais. É sentir que há frio do outro lado das janelas triplas onde a brancura da paisagem reflecte um sol que não aquece.
A riqueza da escrita provém da capacidade de surpreender. Olhar as palavras escritas é procurar até encontrar uma ponta de fio no âmago de um novelo de lã e ir puxando até desmanchar aquela construção elaborada. No final, outra obra se ergueu, os fios reordenaram-se de outra maneira, tricotados por agulhas, tecidos por outras mãos.
Cada um de nós é também um enovelado e desvendar os espaços do outro é conhecer os meandros que nos tecem e nós tecemos. É conhecermo-nos melhor, sabendo o que esteve do outro lado da barricada, a forma como nos olharam, a forma como nos diz estarmos do lado certo ou errado.
Encontrei desde há tempo (por mão amiga destes espaços), uma escritora brilhante, mulher fascinante que se despe dignamente dos seus atavios, partindo de um olhar sobre uma natureza árida e seca. Agreste. Sob todos os véus que lhe cobriam o corpo, os sentidos desvendaram o mundo longe, escutando a liberdade dos nómadas, provando o sabor das letras, esbracejando para não se afogar na submissão da mulher numa sociedade falocrática.
Os seus livros, para além de constituírem um libelo desafiando as leis do Alcorão que reduzem a mulher à função única de procriar, relatam com assinalável lucidez os movimentos sociais da independência da Argélia. A debandada dos pieds-noirs e dos judeus, as perseguições e injustiças dentro da «Algérie aux Algériens!» proclamada por De Gaule.
Como pano de fundo um olhar sonhador sobre as dunas, as reverberações de luz nas areias escaldantes, o cheiro das tâmaras maduras a apetecerem-lhe a reentrada do ano lectivo.
Molika Mokeddem é hoje médica urologista em Montpellier.
A escrita é o seu amant du coeur.
5 comentários:
como é bela e sugestiva a tua escrita! falando das coisas e pessoas que amas. e partilhas...
Acho que continua por fazer a História de como, nos últimos 200 anos, a africanidade ajudou a reparar o chão cultural da Europa.
Beijoca.
Um tema pertinente e muito bem escrito.
Olá... há muito que não deixava aqui o meu sinal de presença, embora espreitasse algumas vezes.
Na edição anterior, lê-se um pouco de Mia Couto. Escritor da minha terra. Um senhor que por acaso até o conheço pessoalmente.:)
Existem muitas e diversificadas opiniões sobre ele...
Continuo a gostar muito de te lêr.
Volto com mais disponibilidade. ;-)
Daniela
A citação de Malika Mokeddem fez-me sentir, mais uma vez, a bondade da sua presença atenta e produtiva aqui. Tanto essa citação como o seu
texto fazem-me sentir um pouco dado
à comoção daquele tempo em que lia a imprensa francesa, os escritores
que sabiam a necessidade de apagar
esse fogo sem que os pés se tornas-
sem negros. A «fala» de Malika aba-
na a nossa consciência.A visão das
casas retomadas e o excesso de al-
mas vogando entre portas já fecha-
das, eis algo que senti nas gares
marítimas. E, muito particularmen-
te, ligando-me ao testemunho de Simone Beauvoir -entretanto naquele
dilacerado livro que, através da torturada Djamila Boupacha,nos dá a ver o limite da cegueira humana,
prevertida, vingando uma descoloni-
zação inexorável. A OAS vestira-se
de negro,ressuscitava a Inquisição.
R.Sousa
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