Assim às vezes me apetece ignorar o meu corpo, esquecê-lo, olhá-lo de súbito com surpresa: o que é feito de ti, velho corpo? Como passas? Estás pois acabando. Virá daí a inverosimilhança da morte? Um corpo que apodrece, mas a luz de dentro tão viva, tão igual: como entender que envelhecesses, meu irmão? Mas não o penses. Agora não. Ah, sê em ti esse princípio eterno que te vive. Abre a janela, clama para a montanha. A terra responde-te, a terra submete-se à tua força monstruosa. Mas não abro a janela e olho apenas. À luz pálida do céu, a neve estende-se ao limite dos meus olhos com a sua alvura doce de leite.
Vergílio Ferreira
Imagem copiada daqui
A medição do tempo foi sempre uma preocupação dos homens. Com justeza.
Desde cedo, poder prever as cheias que se verificavam para o cultivo das terras, para além de compreender as razões desses acontecimentos, era uma questão de sobrevivência quando nos tornámos sedentários. Depois de olhar as estrelas, saber do sol o seu arco, periodicamente aumentando ou diminuindo, é imenso o historial que nos permite hoje controlar ao segundo o momento exacto em que numa determinada cidade do país, numa rua determinada, num determinado multibanco, procedemos ao levantamento de uma quantia determinada. Saber os nossos passos.
E o tempo de cada um de nós. O dia em que nascemos, os anos que percorremos, o século completado já para alguns, a esperança de vida, tudo é controlado ao milímetro. Não será excessivo? É mesmo possível referenciar alguém pelos anos de vida quando o cérebro se mantém disposto a cumprir com a eficiência esperada as solicitações de cada dia, os desafios, os sonhos mais altos ainda em mente? Não tenho a certeza.
Há muitas palavras que se mantêm eivadas de sentidos que não correspondem exactamente ao significante usado. Referindo-se uma pessoa como velho, ele até pode não ser antigo, pode nem ter muitos anos contados e o adjectivo é dolorosamente pejorativo. Para o jovem que se comporta como tendo mais idade e para o menos jovem que vê a palavra ligada a algo de indesejável. Mais do que isso, execrável. Como se todos nós não caminhássemos para velhos a velocidade estonteante. Mau é contarmos os anos. Nem havia necessidade, agora que as operações plásticas de todos os tipos mostram de nós aquilo que desejamos. Sem dúvida que, quem se submete a tais cirurgias é porque decerto se sente diferente por dentro e nenhum velho se prestaria a isso. Se o faz é porque é jovem, independentemente dos anos que tem.
Há muitos velhos por aí. De corpo, de espírito e de graça.
Eu gosto dos velhos.
10 comentários:
também eu gosto. que remédio... rss
gostei muito do texto.
Também eu. Um bom fim de semana.
Diz um velho provérbio chinês que 'enquanto se alimentar um sonho, pode-se envelhecer, mas nunca se será velho'...
abraços!
Lembra-se? Vergílio Ferreira, um dia, abriu «Alegria Breve» dizendo,
na impossível neutralidade,mais ou
menos o seguinte:
«A minha mulher morreu hoje, vou enterrá-la no quintal». O persona-
gem ficou só naquela aldeia, revol-
vendo a ausência de Deus e o limite
da vida.
O seu texto que está esplendidamen-
te encimado por uma citação de Ver-
gílio Ferreira e aborda, com grande
densidade poética, esse percurso,o
lugar dos velhos antes de o serem,
porque estão jovens na cabeça e por
vezes surgem irmanados por rostos
como o daquela mulher de aldeia,
mulher sem idade. Viver é estar ali
e nunca longe do que é preciso ama-
nhar.Aquele rosto é fresco, sorri, continua fiel à sua terra, à sua casa, mal pensa que lhe cabe morrer
ali, sem saber quem encontrará de-pois disso. Tanto como a estes velhos, o que me faz gostar deles é
começar a pertencer-lhes, podendo
viver a parte de contemporaneidade
que nos sobrepõe em partilha.
«Cheguei ontem e decidi ficar»
(A Casa Revisitada)
Até breve, Jawaa voando.
Rocha de Sousa
Também gosto dos velhos.
Faz poucas horas que cheguei do Museu do Oriente.
Por lá descobri umas quantas, de entre as quais as lendas sobre as origens (perdidas no tempo) das artes marciais e sua filosofia de prolongação da vida presente, que acabou por gerar o mito dos "imortais", mestres que viviam séculos a fim, ainda hoje venerados. Tem isto tudo algo de belo, por se tratar de uma forma de querer viver ao máximo a existência real, ao invés de começar, cedo demais, a sentir-lhe o fim. Vivemos pouco e envelhecem-nos depressa! E envelhecemo-nos depressa, também! E é por isso que eu só gosto de alguns velhos: não gosto dos que se fazem velhos por se fazerem velhos. Gosto dos que envelhecem fazendo-se gente. Mas que sei eu disso ainda agora?!...
Na verdade, vinha aqui agradecer-te a do milho-rei. Fazes-me envelhecer mais culta! :-)
Um abraço!*
Beleza e sentimento sentido naquele magnifico rosto fotografado e na escrita daquela que ama a vida de viver sabendo respeitar e sentir, amando os vivos mortos e os mortos vivos.
Maravilhoso.
:)Daniela
Também eu e, para ser honesto, desde criança que me sinto velho.
Beijos.
Gosto essencialmente do que sabem e nos transmitem. Excelente divagação sobre o corpo mas não admira, Virgílio Ferreira e mais a tua prosa...
Abç
Obrigada. Maravilhoso Sentir: sublime! Gostei do blog.
Um beijinho,
Sandra
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