Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
Maria Teresa Horta
Recolher as crianças, saber dos estudos, os trabalhos de casa, fazer as compras, as refeições, a roupa para mudar, pôr a lavar, estender, passar a ferro. O marido tem trabalho até mais tarde, faz uns biscatos para o dinheiro esticar para as roupas dos filhos, para os sapatos que já não servem. Chega a casa cansado, coitado, há que deixar pronta a janta antes da reunião de pais da escola, sempre demora mais do que diz na convocatória.
Chega estafada, com os problemas dos outros a acrescentar aos seus, as preocupações redobradas, os seus filhos convivendo com aqueles outros filhos daquelas mães desprotegidas, maltratadas pelas vidas, pelos seus homens sempre ausentes dos problemas dos filhos que também são deles. Há aquele pai adoptivo, cuidadoso, o olhar abrindo de preocupação, como ela, pela menina que sofre ainda uma infância de maus-tratos e não consegue encontrar na escola a segurança de que precisa.
Quando chega a casa, as crianças estão pregadas na televisão, o marido dorme no sofá, já jantado. Há que lembrar-lhe o caminho do quarto, dar banho aos meninos, dar-lhes de comer e pô-los na cama, arrumar a sala, os brinquedos, a roupa esquecida sobre as cadeiras, ainda quer dar uma olhada à novela, aproveita para passar a ferro entretanto. Antes de pensar em deitar-se, descer o que há no congelador para o dia seguinte, até se esqueceu de jantar.
Aquece um copo de leite e senta-se na mesa da cozinha.
As suas mãos afagam o copo enquanto ela afoga o seu entendimento da vida.
8 comentários:
Maneira poética de contares a realidade de muitos. Pois é verdade, se não tivermos, nem que seja só um pouco, de poesia dentro de nós, morremos completamente.
Fico sempre preso à ordem dorida desta prosa, mesmo quando ela evoca
as delícias do crescer na terra dos
embondeiros, meninos negros cujas cabeças eu afagava no prazer da sua
dureza. As mães dessas crianças eram outras, viviam o esforço telúrico, a roupa lavada no rio, o sentido da espera. Jawaa não nos fala apenas da mulher urbana, toma-a como imagem da moderna escravidão
na teoria dos mercados, na ilusório emancipação de muitas jovens que chegaram até nós, vindas dos anos 60, casando cedo e morando em casas de um conto cento e dez, bafejadas pelo espaço complementar de uma varandinhas onde se secava a roupa ou se usufruia, na Primabera, de alguma tarde mais longa e morna. Hoje, nas periferias das metrópoles, os dias de trabalho e a dissolução do trabalho seguro geram retratos como este, esta cantata sofrida com
que Jawaa nos presenteia ao ritmo
de um copo de leite quente capaz de avivar a sabedoria após todas as perdasconfirmadas. Exemplar.
Saudações amigas
Rocha de Sousa
Jawaa,
apetecia-me voltar a págima e continuar a ler a história...
Formidável e cheia de sensibilidade a maneira como descreves o dia a dia de tantas MULHERES, que na azáfama diária e que na ânsia de satisfazer todas as necessidades dos que as rodeiam, quase se esquecem de si próprias!
Gostei muito!
Rotinas.
A vida passa-se como uma peça de roupa a engomar, guarda-se até ao dia seguinte, afaga-se no consolo de si mesma, sempre a ultima a recolher.
Retrato. A sépia.
Um beijo.
(Tanta beleza...)
Uma forma sensível e bela de descrever as realidades dste nosso mundo de homens e mulheres...
pungente retrato. do quotidiano de muitas mulheres. a vida é dura...
"Sobe luisa, luisa sobe...sobe que sobe sobe a calçada..." A vida nem sempre se apresenta em tonalidades de azul, mas não é ai que radica o seu mistério?
Beijo pingado de Azul e admiração por tudo o que escreve.
PS: Quando eu for grande também vou querer escrever assim!
Seu Pingo
Quando te (re)vejo, vejo o estafado gesto, do copo de leite... suave resignação. Ah...os filhos, só por eles, sim!
Bj
Enviar um comentário