domingo, janeiro 13, 2008

Sortilégio


«Agora, ao rever o passado, viu em que sulco profundo tinha mergulhado. O pior de cumprir um dever é que aparentemente não dava para fazer mais nada. Pelo menos era a opinião que os homens da sua geração tinham. As divisões constantes entre o certo e o errado, honesto e desonesto, o respeitável e o reverso, tinham deixado pouco espaço para o imprevisível. Há momentos em que a imaginação de um homem, tão facilmente subjugado à vida de todos os dias, repentinamente se ergue acima da rotina diária e avalia as longas espirais do destino.»

Edith Wharton




A escrita é sempre um acto solitário. E solitário porque é a expressão de pensamentos através da mão que escreve num papel ou dos dedos que digitam num teclado. E já agora, jogando com as palavras, é também um acto solidário, não necessariamente para com os outros, mas para com os próprios entendimentos.

Voltando à primeira palavra, direi que por aqui me faltam outras, parecendo incoerente com o título anterior de que não faltam as palavras. A solidão de quem escreve é relativa, ninguém escreve só, desacompanhado, sem espectadores ainda que fantasiosos. O povo humilde e sábio usa «falando com os seus botões»; em tempos da Antiguidade Clássica, Horácio, mais pretensioso, não sei se tão sábio, escreveu naquela ode sem par: «ergui um monumento mais alto que as pirâmides, mais perene que o bronze». Na imaginação pessoana presume-se «emissário de um rei desconhecido» e Agustina diz que «as memórias procriam como se fossem pessoas vivas».

O sortilégio da escrita acontece simplesmente. Como na praia, manhã cedo, quando dos orifícios na areia espreitam duas patas, três; depois os pequenos caranguejos espalham-se pela praia num rumorejar que se mistura com o bater manso das ondas na maré vazia. Outras vezes não acontece nada. Então, é preciso caminhar devagarinho e colher aqui e além, escolhendo, as pedras mais lisas, a concha mais colorida. Mesmo de Inverno quieto, sem chuva, sem marés vivas, quando as tardes já seguem espreguiçando-se pelas horas, o imprevisível acontece.

O problema surge quando o que desejamos contar é tão verdadeiro quanto é inverosímil, tão doloroso como incurável, tão gritantemente real que magoa. Aí há palavras para dizer, mas é preciso escolher tanto, é tudo tão ténue, tão frágil, tão subtil, que pode quebrar o equilíbrio.

Deixemo-nos então quietos, olhando o mar, protegidos pelas rochas do vento que ainda sopra.

7 comentários:

Rafael Almeida Teixeira disse...

Para mim, o ato da escrita é o ponto máximo de prazer que o ser humano pode sentir.

Buda Verde disse...

querida escritora, para saber escrever é necessário conhecer primeiro a solidão.

beijo.

Rocha de Sousa disse...

Afinal não faltam palavras. Quando,
da sua parte, a mente lhe parece mais opaca, as escolhas mais difí-
ceis, eis que as diversas memórias
da experiência, entre muitas práti-
cas, emerge com a madrugada, mesmo
sob o peso da solidão. Aliás, este Rafael Velasquez tem razão: o tra-
balho do escritor precisa ter havi-
do, por ele ou por nós, a passagem
pela solidão.
As suas palavras, desta vez, pare-
cendo que anunciam a hesitação, a quebra, faltas sem nome, tornam-se
a breve trecho numa belíssima re-
flexão sobre o acto da escrita, as experiências que a fundamentam, s
solidão de que precisa. Muito bem,
como sempre: o sortilégio aconteceu
na hora em que o espírito nos recu-
pera e o sonho recomeça.

jorge esteves disse...

Quase, quase sempre nos faz sorrir quando descobrimos que as palavras se transformaram em úteis e perfeitas molas que nos servem para prender as nossas ideias...
E fica tudo certo!

abraço.

M. disse...

Texto fabuloso!

Manuel Veiga disse...

privilégio ler-te...
um texto soberbo.

bettips disse...

Aprendemos pois a lidarmo-nos com a delicadeza do que não sabemos. E talvez "o outro" nos acolha com uma compreensão e carinho que
"equilibre" o dia...
Bjs