Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
Teixeira de Pascoaes
O mundo que eu construí é só meu, embora caiba por lá o mundo inteiro.
A minha casa à beira do rio, o rio que crescia nas Chuvas e enchia as lagoas das margens, o rio que subia, subia e cobria os capinzais e brilhava então para a casa grande. Os animais que moravam por ali tinham de sair desabrigados para as flechas ou tiros que os atingiam. Naquele tempo não me feria a desonestidade da astúcia humana para com os pobres animais indefesos, a minha insensibilidade habitava-me, completamente imune à dor alheia. Depois de mortos não passavam de carne para servir à refeição, eram tapetes lindos para o quarto, até carteira bonita para oferecer à mãe.
Três, quatro dias, durava o espelhado junto ao rio lá em baixo e então muitas coisas aconteciam.
Um dia trouxeram-me uma espécie de cachorrinho que apenas chiava. Tinha sido resgatado quando a sua mãe raposa o transportava nos dentes para um lugar seguro e havia encontrado a morte. Cabia na palma da minha mão e escondia a cabeça e o corpo onde pudesse, assustadíssimo. Acabei criando-o a biberão e cresceu selvagem e bonito, apenas permitindo que eu me aproximasse dele, agredindo quem quisesse deitar-lhe a mão. Foi uma experiência fascinante porque fui dele a referência de protecção e ele foi-me fiel. Até ao dia em que eu fui obrigada a quebrar o elo que nos unia e a entregá-lo ao Jardim Zoológico, perante a ameaça que recairia sobre ele, caso o deixasse livre.
A outros animais servi de ama, principalmente cães e gatos, até a uma cabra doméstica.
Da minha relação com os animais prevalece uma intensidade emotiva nem sempre amável, quase sempre intransferível, sempre insondável para o ser humano comum.
Mas é o mais puro dos sentimentos que alguma vez conheci porque nada o distrai do puro afecto, nada o demove do ponto de referência.
Não falha. E confia. Não é humano.
8 comentários:
adorei. excelente o Teixeira de Pascoais, muito raro na blogsfera.
O teu mundo é fascinante, ter cumplicidades com os animais é algo de sublime, dos sentimentos mais puros!
Muitos beijinhos e um excelente ano!!!!
quem sabe mais de afectos que uma raposa, acabada de ser salva por uma princesa ou a acabar de ensinar a um principezinho a importância do cativar?
[um blog espelhando intimidade e alguns sentimentos mais intimos - parabéns!]
Gostei muito do teu texto. Não é acaso que estás na minha lista de favoritos...
As tuas palavras servem-me.
Nada mais direi eu tornar-me-ei demasiado humana.
DEixo um beijo.
Minha querida, venho ler isto depois, com a paixão e atenção que me merecem as tuas palavras, os teus sentidos. Entretanto, deixei um comentário ao teu comentário e ao da justine, lá no meu lugar. Em especial, porque afinal estamos do mesmo lado da Arte (e da Vida, se bem me parece!) Bj
Os animais são o que há de mais seguro: matam para comer.
Dou-me bem com animais e pior com gente.
Gostei tanto da tua evocação que me lembrou infância de amigos. Cães, carneiros, galinhas de olhos verdes, coelhos, canários, periquitos ao ombro...
Bjs
É preciso lê-la mais vezes e com o
tempo certo. Esta viagem de enten-
dimento da vida e do amor pela sua
preservação surge de forma magnífi-
ca na respiração leve da sua escri-
Seria difícil dizer melhor as coi-
sas acontecidas e os princípios de-
fendidos.
Depois, sem fazer moral da histó-
ria, coloca-nos na esfera da sur-
presa e da condição humana, para-
doxal e superior.
«Não falha.E confia. Não é humano».
rocha de Sousa
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