«… e vai sendo em cada minuto mais difícil não me agarrar a ti, deixar a minha lucidez, o meu bom senso de resignada já senil – porque em muito novos não tememos estragar, nem sofrer – cansada dos pormenores prosaicos e desagradáveis duma «aventura amorosa». Revolto-me por nada ser possível – como odeio «a minha lucidez», como queria ser a rapariguinha que se abraça ao seu primeiro namorado, apatetada e comovente – a rapariguinha que desenha, no entanto, as linhas frias e perturbadas da realidade aparente aos outros, todos a condenarão rapidamente, até que ela se cristalize na ordem desejada. Aqui me têm; o odioso coro do bom senso anuncia verdades eternas – como poderemos viver sem nos contentarmos com o possível? Cristalizo-me nos estatutos aprovados; recordo; imagino.»
Marie Hélène dessinant Arpad Szènes
A leitura é um acto individual em que cada um de nós mergulha com maior ou menor sofreguidão, levados que somos por motivos vários, nem sempre os mesmos, nas diversas ocasiões.
Leio e releio Mestre Aquilino. Desculpem, sei que é difícil a leitura para quem não teve, como eu, um pai que só conhecia as histórias da raposa repetidas e reinventadas para nós a cada passo, a cada pedido. Encanto-me sempre com o observador da natureza humana, dos contrastes da sociedade, o narrador irreverente do viver das gentes mais rudes com quem conviveu e de quem fez um retrato preciso, opondo a rudeza do gesto à pureza de sentimentos.
Luísa, a morgada, vassoiruda, de largos encontros e corada como camoesa…
Rosa faceira e morena, era ver como os cabelos lhe borrifavam das tranças em anéis sobre a testa, cobrindo-lhe as fontes de uma sombra fagueira…
Florinda, toda sécia e perluxosa, inda que com mais presunção que virtude. Nanja que ela não tivesse uma legítima arredondadinha e não fosse mulher curiosa, asseada, toda videira, sabendo coser à máquina...
Mulherão aquela Zefa, nutrida, limpa e perluxosa que nem moça de padre-cura...
O peito dela palpitava; arfava forte; cantavam lá dentro todos os alegres pássaros do mundo.
4 comentários:
Jawaa
Ler - será um
estado d'alma...
Alem destas mulheres escritoras que citas e que por elas nutro uma admiração imensa.
Recordo Maria Lamas que escreveu os preciosos volumes de “As Mulheres do meu País”- saga da condição da Mulher em Portugal - saga dorida de quem sabia olhar - criticamente amar.
Paralela a esta saga da Mulher - uma outra que lhe está subjacente a da Criança. História ainda hoje dramática e cruel.
E quem diz história da Criança diz a história do Homem. A sua raiz.
Mulher de escrita tão rara - de dimensão trágica na arena fria da solidão.
Solidão. Notas do punho de uma Mulher.
Da sua exemplar e amarga vida de escritora - recolho estas palavras:
“Jamais quem escreve se devia importar (mas importa-se) de lhe escassearem os leitores - os amigos - as afinidades - a expansão - os reflexos.
Quem chega à convicção de que só se é livre pela isenção e pelo despojamento? De que só se é livre - leve - desembaraçado - pelo desinteresse?
Ninguém.
Porque o coração pede - o espírito espera - exige - ambiciona”
Parabéns por este post.
Beijinhos com carinho
Jawaa, obrigado. Faltam-me as pessoas que ainda falem, transcre-
vam e homenageiem estas mulheres
com quem aprendi grande parte do
pensamento moderno da escrita e da
sua relação com a imagem. Todo este
seu trecho, e as palavras que pertencem e lhe são apropriadas,
anunciando a abertura a outras formas de as usar, deixaram-me ver-
dadeiramente comovido numa espécie de sentido não redutor da contemporaneidade.
Por mim, agradeço-lhe, isto é, fe-
licito-a.
Rocha de Sousa
Ler, é aquele prazer, aquela companhia amiga ou perturbadora que ninguém nos pode tirar.
Aquilino...não o leio há tanto tempo! Tens toda a razão sobre o Dia da Mulher!
Bom domingo! **
Belo texto! Já há poucas MULHERES, sabia?... andam por aí umas criaturas do sexo feminino, e é tudo.
Cumprimentos.
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