terça-feira, janeiro 09, 2007

Nevoeiro


Tu que crês num mundo melhor e maior,

Grita bem alto que o céu está aqui.

Tu que vês irmãos, só irmãos em redor,

Crê que esse mundo começa por ti.


Luís Góis




Corro a cortina e o nevoeiro permanece.

Para além do nevoeiro, miríades de imagens se sobrepõem e não consigo afastar. O sol que vejo queima a terra vermelha dos mutilados da guerra, dos sobreviventes da sede, do calor húmido e pestilento duma terra injusta porque liderada por homens insanos.

Eu nasci em África, num lugar menos quente, menos árido, bem mais acima do mar, bem mais fecundo, de montanhas e vales traçados por rios que lavam ainda o sangue dos mortos e espalham ferrugem nas minas deixadas pela guerra. Meu pai foi aí um colonizador, nunca lhe chamaria um colonialista, com toda a carga negativa adstrita. Foi um homem probo. Não tocou na herança que seus pais lhe deixaram quando abalou para África em 1920, depois de cumprido o serviço militar, nem para aqui trouxe rigorosamente nada do que Angola lhe deu. Os seus restos mortais repousam algures, como sei que gostaria, na terra que ele amou como sua.

Eu regressei em 75 porque tinha dois filhos e o meu mundo eram eles. Nunca me arrependi da decisão tomada em horas difíceis, quando homens armados de movimentos de libertação saltavam os muros do meu quintal e no ar zumbiam morteiros que só me tiravam a angústia quando explodiam longe da casa onde os meus filhos brincavam debaixo das camas. Egoísmo? O que quiserem que seja. Foram três dias de inferno num Agosto inesquecível que me escuso a recordar, para além da imagem de dois homens em casa, a cortarem em três cada um dos cigarros que restavam porque era impensável sair à rua.

A minha infância foi um sonho bom, a minha adolescência bem mais real. Pardacenta. Reservada. Restringida. Lembro a proximidade de minha família com os Dáskalos. Recordo amizades de uma vida, minha Mãe e a Baronesa, sem filhos, mas sofrendo pelos irmãos, pelos sobrinhos queridos. O sofrimento, a saga de uma família que apostou tudo numa terra que tudo lhes tirou. Desde menina me recordo de ouvir falar no Zé, no Luís, estudantes já universitários, presos e humilhados pela PIDE, seu tio Sócrates, refugiado em Argel, depois o David, que ofereceu a Angola a sua vida de médico, a quem retalharam o corpo bem depois da independência. E Zaida, a Zaidinha, a mestra por excelência de várias gerações, do velho Colégio Ateniense, que foi a última a regressar, octogenária perseguida. Não sei se ainda está neste momento em Luanda a Maria Alexandre, mas creio que não. Todos dedicados à cultura, à pedagogia, à ciência, ao ideal de uma terra imensa de corpo multicolorido e alma enérgica, grande elefante conduzindo a manada de todas as tribos, todas as línguas, todas as religiões. Com segurança e prosperidade.

Ontem como hoje, o meu mundo é aqui. Não sei se muito melhor, mas decididamente menos perigoso e um pouco mais justo. O preço do crude desceu e os combustíveis aumentam para todos, a Santa Casa da Misericórdia não tem o necessário para acudir aos que precisam, mas tem o suficiente para promover o Dakar de que a França desistiu e a Espanha abandonou. Mas aqui - como na escola - só é preciso que o povo se sinta feliz. E o povo continua a jogar no euromilhões e a ir em peregrinação a Fátima para deixar o óbolo à Igreja, para ela erigir mais monumentos, para arrecadar os milhões de que se orgulha, mas com que não ajuda os pobres. «Quem dá aos pobres empresta a Deus». A Igreja é Deus, não precisa de emprestar-Lhe nada.

Eu não sou deus, nem sou pobre. Sou apenas povo e não frequento a igreja. Nunca dei um quilo de arroz para ajudar os meus Irmãos em Angola. Nem tenciono. Devo ser egoísta.

6 comentários:

Isabel disse...

Gostei muito dese teu post amiga.

É polémico e corajoso e como sabes eu gosto disso.

Aqui só é preciso que o povo se sinta feliz... verdade... quanto mais feliz, ou ilusóriamente feliz melhor... fica mais cego, mais distraido... mais longe do que é de facto importante.

Não sou religiosa, muito menos católica... Tenho um Deus que não me pede nada muito menos esmolas ou sacrificios.
Não contribuo, pelo menos não voluntáriamente para o enriquecimento de qualquer igreja.

Dou o que posso a quem escolho dar.

Dou-me a mim.

Não sou pobre nem sou rica.

Acho que devia dar mais do que dou.

Acho que devia aprender a privar-me mais para dar a quem precisa mais que eu.

Uma amiga que fiz aqui no mundo dos blogs, chama-lhe desapego.

Tenho saudades dela.
E das coisas que me ensinava.

Tento aprender a praticar mais o desapego.

Sabes porque porque no fundo, no fundo acredito num mundo melhor.

Beijo.

Isabel

Rocha de Sousa disse...

Cara amiga,
Eu já não dou conta onde está quem e onde devo ancorar. Hoje tenho estado consigo, mas encontrei nos meus «lugares» uma nota sua sobre a dificulkdade de aceder ao beta, que finalmente acabou, embora tenha sequelas. Nesse seu texto, era a pessoa que eu tenho encontra-
do e lido.Eu tinha a impresão de haver escrito sobre «O Nevoeiro» e só hoje o li bem e percebi que temos em comum uma nostalgia sobre África (Angola) embora em situa-
ções diferentes.
«O Nevoeiro» é um derradeiro grito
sobre a saudade dos grandes espaços
pela memória da menina que sente as perdas e tem mágoa de não «po-
der» enviar arroz aos seus irmãos de outrora.É metáfora e alegoria,
numa escrita rangente e contida.
Havemos de falar sobre estas coi-
sas, talvez por mail, até porque tenho publicado livros e um deles
que narra a minha estadia lá como militar miliciano forçado.
Até breve.
Um grande abraço/ Rocha de Sousa

veritas disse...

Olá!

Eu também não frequento a igreja. A igreja é uma instituição de hipocrisia. Basta apreciar o luxo do Vaticano...e ao mesmo tempo ter na mente uma dessas reportagens sobre a fome em África, basta pensar no destino do ouro de Fátima e ao mesmo tempo mirar as pessoas que aí vão porque no auge do desespero fizeram uma qualquer louca promessa, para cumprir até sangrar. Esse não é o Deus que eu cato! Esse é o Deus produto da distorção da mente humana.

vidavivida disse...

Gostei.

Como sempre sintonizo-me contigo nas ideias que tão bem sabes explanar.

Quanto à igreja católica, já tive oportunidade de dizer o que penso dela e, o que mais me admira é que chegados ao século XXI, em que o homem tem evoluído em todas as áreas, ela exerce uma influência enorme na mente de pessoas de todas as camadas sociais e culturais, deste velho continente chamado EUROPA.

Será que este Velho Continente, de tão velho, está a ficar senil e a necessitar de um grande abanão?

Ainda se fosse na América Latina, vá que não vá, porque é nos povos mais pobres onde o catolicismo está mais fortemente arreigado. Será pela pobreza? Será pelo analfabetismo? Pela caridade não será certamente, porque se vêm praticar nos diversos Países que a constituem, actos dos mais atrozes que se possam imaginar.
De mim a igreja não vê nem jamais verá, um cêntimo entrar nas suas caixas de esmola, nos diversos peditórios ou campanhas que possam realizar, seja com que intuito for.

Anónimo disse...

Puxa, este é um senhor 'post', li-o uma vez e voltei a fazê-lo agora, antes de comentar:
EXCELENTE!!

Um beijo grande, IO.

Carlos Gil disse...

gostei. muito.