domingo, julho 14, 2013

INSANIDADE




Tudo o que está para acontecer até sexta-feira tem um valor histórico nas nossas vidas, embora o projecto dos outros esteja dependente dos sinais apropriados. Histórico porque vem arrumar as respectivas prateleiras da memória, atando nós desfeitos há tantos anos, mesmo que os fios, as cordas ou os nastros sejam diferentes. Nestas duas últimas décadas de retorno, a nossa cumplicidade, apesar de acontecer entre pequenos lagos de angústia, foi gerando desvios dos lugares comuns com que nos envolvem os outros e a cidade. Não quero revisitar no teu lugar de apaziguamento qualquer marca de encontros ainda não esgotados, porque vinte anos apagaram os desencontros de Moscovo, a própria humidade que escorreu pelos rostos agora já sulcados.
Rocha de Sousa, in «Narrativas de Suprema Ausência»





Desci ao jardim, preocupada com os dias de calor, o ar abafado, até os cactos a erguerem os braços em protesto de tanta canícula. Pequei no regador e dei algum conforto aos malmequeres de cabeça caída, fôlego ao ciclamen fúchsia, molhei a gerbera amarela.

Num dos vasos, um cacto parecia ter deixado cair um dos braços esguios e, sem pensar nas consequências certamente previsíveis para alguém mais afecto a eles, quis levantá-lo. Incomodado com a minha interferência, disparou as suas pequeníssimas defesas sobre os meus dedos. Instintivamente os retirei, e abandonei de imediato o seu território, magoada e ofendida.

Durante muito tempo confortei as minhas mãos feridas, sem sangue, mas doridas, sem poder tocar em nada, até que recorri a uma pinça para extrair, um por um, aqueles pêlos ruivos que me mordiam a carne. Durante esta operação minuciosa, o pensamento desligou-se e voou para o livro que faltava escrever, as dúvidas dissiparam-se em cada espinho arrancado.

É preciso escrever. É preciso denunciar. É preciso dizer que nos enganámos e nem sempre temos razão. É preciso aceitar que fomos ridículos algum dia e não é apanágio apenas de alguns, porque a ignorância vive connosco. É preciso consciencializarmo-nos de que estamos sós. Gerir esta constatação com serenidade é aceitar a inevitabilidade da morte.

Ainda os cactos, outra vez os cactos, vítimas inocentes da credulidade das gentes, cactos são desacatos, dentro de casa trazem azar. Na rua, no jardim, dentro de casa, cuidados ou não pela mão do homem, eles sobrevivem à falta de água com a inteligência da natureza. E explodem em beleza impar quando menos se espera; corpos disformes agressivos mudos, de repente abrem janelas de cor, atraindo insectos, vorazes uns e outros.

Debruço-me agora à janela do mundo, como Gala retratada uma e outra vez, repousada enfim, olhos postos num passado que apenas vive de imaginação doentia, como criança solitária que se entrega em falas com o amigo inventado, alter-ego que se encaixa nos espaços e sentimentos partilhados, sem que a presença real afecte de algum modo a mediocridade do convívio. Não há laços que possam perecer em tempestades, finos e fortes como as teias que a aranha tece e com zelo refaz ao primeiro rasgo, as gotas de chuva enriquecendo a arte com o sol reflectido pelas manhãs.


quarta-feira, julho 03, 2013

COMPLEXIDADE



Que alegria chegar àquela casa, que pena virmo-nos embora para tristeza do inverno, a tristeza das aulas, o suplício dos professores. Já escrevia nessa altura, versos, ninharias. Mas ia ser o maior escritor do mundo, isso era certo. Na minha opinião sou, claro, não vale a pena escrever se não se é o maior escritor do mundo. Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso também e, de repente, o maravilhamento de novo.

António Lobo Antunes




Na manhã ensonada, palmilho a praia longa solitária sedutora na sua mansidão, a receber o mar em carícias de espuma, o som dele chegando de longe e repetindo-se, a cor quase negra do horizonte onde a neblina breve esconde o recorte das ilhas, cortado mais perto por caracóis brancos enrolados sobre o azul, depois verde-mar de beleza sem medida.

Caminho até aos pescadores que se perfilam ao fundo, junto à foz do rio, alguns a meio da embocadura do Arelho, sobre afloramentos de areia, a maré vazante a permitir a travessia a vau para o Bom Sucesso, onde começam a surgir chapéus-de-sol e pára-ventos coloridos. A praia mantém-se lisa, marcada agora por areia mais grossa, pequeninos seixos marcando a descida da maré e pegadas espaçadas de algum pássaro, talvez gaivotas que voam agora baixo, mais atentas aos despojos humanos do que ao peixe do mar.

A lagoa começa a encher-se de gente, crianças e adultos a aproveitarem a temperatura da água mais amena, mais parada neste virar de maré. Não tarda o mar crescer impante e correr com força lagoa adentro, em corrente forte e quantas vezes traiçoeira para os mais desatentos, que a Natureza é um ser vivo e não se doma, temos nós de nos afeiçoar a ela.

Retomo o caminho do mar, do som do mar, da luminosidade que chega mais forte, das ondas que se desenrolam brancas ao longe, acompanhadas já de pontos negros quietos, à espera do momento de as cavalgar em equilíbrios precários. A praia aberta, sem vento, o cheiro da maresia a entrar pelas narinas traz um momento brevíssimo de regresso à infância, de repente a sensação de faltarem as conchas, as pedras, os caranguejos, a vontade de mergulhar.

Ao cair o meio-dia o sol torna-se feroz, a luminosidade cega e o murmúrio das ondas perde-se atrás das vozes humanas. Regresso ao carro e assombra-me do destempero dos que chegam àquela hora em que o sol fere, crianças pela mão, a irresponsabilidade à solta, num assalto do mundo que esqueci naquelas horas breves e fundas. O meu acordar para a vida que nos espera confusa, a meada que não consegue dobar-se, a meada a enrolar-se cada vez em nós mais apertados, o puxar obstinado do fio quando se deve deixar mais lasso, capaz de dar-se-lhe a volta, voltas, encontrar o caminho de novo.