Tudo o que está para acontecer até sexta-feira tem um
valor histórico nas nossas vidas, embora o projecto dos outros esteja
dependente dos sinais apropriados. Histórico porque vem arrumar as
respectivas prateleiras da memória, atando
nós desfeitos há tantos anos, mesmo que
os fios, as cordas ou os nastros sejam diferentes. Nestas duas últimas décadas de retorno, a nossa
cumplicidade, apesar de acontecer entre pequenos lagos de angústia, foi gerando
desvios dos lugares comuns com que nos envolvem os outros e a cidade. Não quero revisitar no teu lugar de
apaziguamento qualquer marca de encontros ainda não esgotados, porque vinte
anos apagaram os desencontros de Moscovo, a própria humidade que escorreu pelos
rostos agora já sulcados.
Rocha de Sousa, in «Narrativas de Suprema Ausência»
Desci ao jardim,
preocupada com os dias de calor, o ar abafado, até os cactos a erguerem os
braços em protesto de tanta canícula. Pequei no regador e dei algum conforto
aos malmequeres de cabeça caída, fôlego ao ciclamen fúchsia, molhei a gerbera
amarela.
Num dos vasos, um
cacto parecia ter deixado cair um dos braços esguios e, sem pensar nas
consequências certamente previsíveis para alguém mais afecto a eles, quis
levantá-lo. Incomodado com a minha interferência, disparou as suas
pequeníssimas defesas sobre os meus dedos. Instintivamente os retirei, e
abandonei de imediato o seu território, magoada e ofendida.
Durante muito tempo
confortei as minhas mãos feridas, sem sangue, mas doridas, sem poder tocar em
nada, até que recorri a uma pinça para extrair, um por um, aqueles pêlos ruivos
que me mordiam a carne. Durante esta operação minuciosa, o pensamento
desligou-se e voou para o livro que
faltava escrever, as dúvidas dissiparam-se em cada espinho arrancado.
É preciso escrever. É
preciso denunciar. É preciso dizer que nos enganámos e nem sempre temos razão.
É preciso aceitar que fomos ridículos algum dia e não é apanágio apenas de
alguns, porque a ignorância vive connosco. É preciso consciencializarmo-nos de
que estamos sós. Gerir esta constatação com serenidade é aceitar a
inevitabilidade da morte.
Ainda os cactos,
outra vez os cactos, vítimas inocentes da credulidade das gentes, cactos são desacatos, dentro de casa trazem
azar. Na rua, no jardim, dentro de casa, cuidados ou não pela mão do homem,
eles sobrevivem à falta de água com a inteligência da natureza. E explodem em
beleza impar quando menos se espera; corpos disformes agressivos mudos, de
repente abrem janelas de cor, atraindo insectos, vorazes uns e outros.
Debruço-me agora à
janela do mundo, como Gala retratada uma e outra vez, repousada enfim, olhos
postos num passado que apenas vive de imaginação doentia, como criança
solitária que se entrega em falas com o amigo inventado, alter-ego que se encaixa
nos espaços e sentimentos partilhados, sem que a presença real afecte de algum
modo a mediocridade do convívio. Não há laços que possam perecer em
tempestades, finos e fortes como as teias que a aranha tece e com zelo refaz ao
primeiro rasgo, as gotas de chuva enriquecendo a arte com o sol reflectido
pelas manhãs.